Monthly Archives: Outubro 2017

Rusalka

Ninfa da água, historicamente associada ao bem, às chuvas e à fertilidade, esta mitológica figura eslava perdeu o seu estatuto de espírito benigno. A sua bondade perdeu-se no tempo. Outrora desejada, passou a ser temida, qual deslumbrante Sereia do Mar Negro, perigosa sedutora que com a sua incompreensível mas encantadora voz consegue arrebatar os incautos marinheiros.

Rusalka dá nome à mais famosa Ópera de Antonín Dvořák, uma das suas obras-primas. Seduz-nos logo no primeiro acto com uma das mais belas canções de sempre, a “Canção à Lua”, na qual Rusalka apela à Lua altaneira que lhe revele o paradeiro do seu amor perdido, que o abrace, que lhe recorde a importância do sonho e que lhe lembre que é esperado. Face à dualidade da figura, o famoso compositor checo optou pela faceta mais doce, com sentimento. Interpretações brilhantes deste tema, felizmente, não faltam, mas  aquela que de imediato associo ao canto de uma sereia é a da eslovaca Lucia Poppová. Uma interpretação simplesmente arrebatadora.

Outras há, contudo, menos cativantes. A líder conservadora e católica, faz uso do seu rosto de traços eslavos e com rasgados sorrisos procura seduzir o eleitorado tradicional do aliado de sempre. Entusiasmada com o sentido de oportunidade que lhe proporcionou a vitória por falta de comparência na capital, prossegue deslumbrada na crista da onda. Esperta, preenche o espaço deixado vago pela inércia e pelo parco talento de uma liderança esgotada, mas repete o erro e ao invés de desunir, oferece novo propósito à geringonça. Não só não deu voz à indignação, pois todos lhe reconheceram o oportunismo, como pior, perdeu na (co)moção de censura. As águas voltarão a ser turvas e a corrente favorável na comunicação social perderá força porque o objectivo regenerador está cumprido – as eleições para a liderança do Partido Social Democrata já estão marcadas.

 

Uma teoria como outra qualquer

A chuva extinguiu as chamas, mas não apagou os incêndios. Concretizada a adiada demissão, antes que a oposição pudesse (re)apontar a mira para a área da defesa, surgem boas novas à continuidade do respectivo ministro. Pelo menos assim aparenta. Bom timing ou mera coincidência? Não sabemos. As denúncias anónimas têm destas coisas, eternizam as dúvidas sobre os propósitos que lhes estão na origem. Continuamos sem saber se foi roubo, extravio ou ajuste ao inventário, mas o desfecho afigura-se apaziguador dos espíritos mais susceptíveis. Ou talvez não, talvez a ausência de um rigoroso e detalhado relato da ocorrência faça perdurar o sentimento de insegurança na sociedade lusitana. Haja por isso uma narrativa, eventualmente absurda, mas todavia tranquilizadora. Ei-la:

Certa noite de Verão, um grupo indeterminado de indivíduos de má índole deambulavam por uma das freguesias do Concelho de Vila Nova da Barquinha quando esbarraram com um rombo numa antiga e descuidada vedação. Curiosos, penetraram no perímetro e indagaram que oportunidades nele se lhes ofereciam. Alguns edifícios remotos sobressaíram no terreno e quando constataram que a porta estava trancada, concluíram ser ali que o seu prémio se escondia. Arrombada a porta e abertas algumas caixas, muito embora não reconhecendo utilidade prática ao conteúdo, decidiram levar algumas. Depois se veria que destino lhes dariam. Assim foi, a coberto da noite, motivados pelo perverso gozo do furto, optaram por a braço transportar algumas centenas de quilos. Caminharam sem rumo, ao longo de meses e aquilo que começou por ser uma aventura excitante, transformou-se numa desgastante e aborrecida rotina. O sinuoso trajecto percorrido mais não fora que um passeio em círculo. Foi então que o grupo decide pôr fim à desventura e após acesso debate, decide abandonar ali mesmo o seu fardo. Movidos pela inveja, decidem-se pela denúncia anónima, um derradeiro e soez gesto que apenas visou impedir que outros turistas colhessem o fruto do seu “trabalho”…

Não me demito. Câmbio.

15 de Outubro o pior dia de incêndios do ano. Mesmo depois de tudo o que se passou no Verão parece que é possível piorar. Como? Talvez o período de campanha para as autárquicas tenha toldado o discernimento de todos invertendo-se as prioridades nas preocupações, mesmo contra indicações de especialistas que alertaram para o facto das condições climatéricas abrasadoras deverem obrigar à manutenção de um estado de prontidão e alerta máximo. O foco autárquico na manutenção das privadas Repúblicas das Bananas poderá ter tido influência na proliferação de remodeladas Repúblicas das Bananas Assadas.

Parece-me que aos decisores é um pouco indiferente a transição entre Charlie, Delta, Bravo, Alfa, Echo. O que realmente lhes é importante é o  Câmbio, termo no qual se especializaram para colocar pontos finais nas conversas. Tragédia? Câmbio em transtorno. Testemunhos no terreno? Câmbio em afirmações a quente de pessoas em estado de choque ou com stress pós-traumático. Perdas humanas e materiais? Câmbio em fundos de donativos estruturais. Prevenção? Câmbio em inevitabilidade. Responsabilidade? Câmbio em inimputabilidade.

Agora consultam-se especialistas para estudar o que correu mal ao invés de serem previamente chamados a dar o seu devido contributo no planeamento e fiscalização periódica do estado de prontidão do sistema. Finalmente temos conclusões, com indiciação de culpas a nível autárquico e de organismos envolvidos na protecção civil, pelo que aguardemos a chuva de demissões voluntárias ou coercivas. Não acontecendo só pode ser macacada o que até faria sentido pois macacos gostam de banana, mesmo que esturricada.

Câmbio

Método Socrático

O método socrático é uma técnica de investigação criminal que consiste na condução do processo pelo diálogo, no qual o investigador coloca perguntas ora ingénuas, ora irónicas, convidando os arguidos a reflectir sobre os seus próprios valores, actos e contradições. Não se tratou de filosofia, muito menos de tortura. Pelo menos foi o que ouvimos nas gravações. Os diálogos assim estabelecidos ofereceram conteúdos de qualidade rara, material de excelência para primeiras páginas e notícias de abertura, as quais por sua vez despoletaram dinâmicas de êxtase e frenesim nas mais variadas redes sociais. A dialéctica assim gerada foi bastante pródiga em tiradas conclusivas, por vezes vernáculo, e por estranho que pareça, no unanimismo em torno de uma só ideia – é uma vergonha!

Fosse eu pessoa dada às expressões simples e directas, ter-me-ia limitado a escrever “bandalheira”, mas se é freguês habitual sabe que a máxima da casa é “se não puderes ajudar, atrapalha, importante é participares”. Assim fiz há apenas 1053 dias, quando a propósito deste processo, então recém-nascido, escrevi uma analogia entre o espalhafatosa detenção e uma das minhas paixões, a Ópera. Questionava então se seria bufa. À entrada do último acto, continuo sem saber se o é, bufa. Hoje pouco posso adiantar além do óbvio. Não obstante as pouco verosímeis manifestações de generosidade do mercenário que tudo pagou, o discípulo Xenofonte para com o seu mestre Sócrates, é certo que o fim está longe e desfecho incerto. Haja ou não culpa, a dúvida que subsiste é a mesma de há quase 3 anos: Far-se-á justiça?

O impacto da escolha dos carris

Portugal está há muitos meses política, social e jornalisticamente encravado. Engolido  por um furacão temático que o contém, supostamente a salvo, no seu pacífico olho, obrigando-o a dançar ao sabor dos ventos que o circundam, impedindo-lhe o vislumbre do horizonte. Nesses ventos são reciclonados caoticamente os mesmos temas  que perigam à vez o país: incêndios, Tancos, taxa de desemprego, crescimento económico, turismo, greves, dinâmica da geringonça, Marcelo em todas, crise no PSD, We Brand, negociações sindicais, operação Marquês, décimas do deficit, etc, apimentados com umas Trumpalhadas, alarmismos e terrorismos internacionais.

Devido ao toldar de visão este furacão cria uma perigosa ilusão, a de que são estas as questões de fundo essenciais ao futuro do país e do mundo. Estranhamente deixou de se falar da crise dos refugiados, da guerra da Síria, anteriormente tão absorventes, estarão resolvidas? Alguém se lembra da discussão do impacto do CETA/TTIP para Europa e Portugal? Ou é para ser assumido como um facto consumado com que ninguém tem de se preocupar? Será relevante evidenciar que atravessamos um período de seca gravíssimo e que o país precisa de repensar toda a sua gestão de recursos naturais?

Para lá desta barreira temática existem povos, aparentemente não condicionados, que vislumbram bem mais além, ousando tomar medidas disruptoras focadas na construção de um futuro melhor, não necessariamente do ponto de vista económico.

Seria muito bom que Portugal e os portugueses acompanhassem estes movimentos que vão redefinir o mundo a médio-prazo. Claro que para isso teríamos de ter uma população formada e informada, que colocasse o orgulho no seu estilo de vida, no seu impacto positivo no mundo, acima do orgulho desportivo, do comodismo do seu umbigo, uma população que da mesma forma que rejeitaria a nomeação de corruptos comprovados para tesoureiros do seu dinheiro não os elegesse para mandatos políticos renovados, uma população que colocasse o interesse comum acima do seu mesquinho interesse pessoal.

Estou certo que um dia aí chegaremos. Até lá continuaremos a desfrutar da relativa tranquilidade do olho do furacão, fortalecendo-nos num presente que em breve será um passado muito diferente do futuro que se avizinha. Quando terminar a tontura deste constante rodopiar constataremos que talvez devêssemos ter aproveitado todo o esforço despendido não a reentrar nos eixos de que saíramos mas sim a encarrilar em novos rumos, mesmo que economicamente menos favoráveis a curto prazo.

Fazedor de Independentistas

Face ao elevado e infelizmente habitual nível de abstenção nacional, ao invés de me debruçar sobre as nossas eleições autárquicas de ontem, opto pelo referendo Catalão. Ilegítimo ou unilateral, conforme as hostes e simpatias, o acto decorreu da pior forma possível. Enquanto os catalães se colocam à mercê dos cassetetes para votar, por cá nem à bastonada acordamos. O contraste só não é engraçado porque em ambos os casos os impactos são dramáticos. Choca-me a indiferença de cá, país com mais de oito séculos, no qual, apesar de recente, a democracia é altamente subvalorizada por quase metade dos eleitores. Como Estado-Nação, nem nos damos conta daquilo que somos!

A Catalunha, Nação secular, subjugada desde o reinado de Isabel a Católica, unificada nesse Estado de várias nações que se chama Espanha, manteve acesa a chama da sua cultura, da sua língua e das suas tradições. Independentemente de quaisquer interesses ocultos, eventualmente pouco justos ou até mesmo discriminatórios e sobranceiros para com as outras nações espanholas, é impossível não sentir alguma simpatia pela luta independentista dos catalães. Se por um lado o coração dita empatia, por outro a razão dita reservas. Assim é, assim será sempre que a ordem estabelecida dá sinais de mudança. Todos teremos, tal como os catalães, uma perspectiva egoísta – Será bom para nós?

Na dúvida, geralmente preferimos manter tudo como está. Talvez por isso, o governo espanhol optou por abordar o tema pela via legal, em detrimento da via politica. Com esta postura, Mariano Rajoy ao invés de guardião da indivisibilidade do estado espanhol, transformou-se no maior fazedor de independentistas. Não percebeu que os melhores e mais importantes aliados da sua causa são os catalães que não querem deixar de ser espanhóis. A estes, não só aos outros, negou o direito de tranquilamente, sem qualquer tipo de ameaça, manifestar em urna a sua vontade. Ontem despertaram muitos independentistas. Nunca a soberania foi outra coisa senão uma questão politica.