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O impacto da escolha dos carris
Posted by Nuno Faria
Portugal está há muitos meses política, social e jornalisticamente encravado. Engolido por um furacão temático que o contém, supostamente a salvo, no seu pacífico olho, obrigando-o a dançar ao sabor dos ventos que o circundam, impedindo-lhe o vislumbre do horizonte. Nesses ventos são reciclonados caoticamente os mesmos temas que perigam à vez o país: incêndios, Tancos, taxa de desemprego, crescimento económico, turismo, greves, dinâmica da geringonça, Marcelo em todas, crise no PSD, We Brand, negociações sindicais, operação Marquês, décimas do deficit, etc, apimentados com umas Trumpalhadas, alarmismos e terrorismos internacionais.
Devido ao toldar de visão este furacão cria uma perigosa ilusão, a de que são estas as questões de fundo essenciais ao futuro do país e do mundo. Estranhamente deixou de se falar da crise dos refugiados, da guerra da Síria, anteriormente tão absorventes, estarão resolvidas? Alguém se lembra da discussão do impacto do CETA/TTIP para Europa e Portugal? Ou é para ser assumido como um facto consumado com que ninguém tem de se preocupar? Será relevante evidenciar que atravessamos um período de seca gravíssimo e que o país precisa de repensar toda a sua gestão de recursos naturais?
Para lá desta barreira temática existem povos, aparentemente não condicionados, que vislumbram bem mais além, ousando tomar medidas disruptoras focadas na construção de um futuro melhor, não necessariamente do ponto de vista económico.
- A nível mundial olha-se para o impacto da automação no volume de empregos pensando-se na necessidade garantir um rendimento universal que impeça milhões de cair na pobreza;
- Na Finlândia refaz-se todo o sistema educativo reconhecendo a inaptidão do sistema actual para enfrentar os dias de hoje e amanhã;
- Na Dinamarca legisla-se para garantir uma produção de comida orgânica livre de pesticidas;
- Na Suécia chegou-se à extinção de lixo fomentando-se ao mesmo tempo uma economia circular;
- Em França alargam-se as frentes da necessária guerra ao plástico;
- A China constrói a sua primeira cidade sustentável, projectando a construção de centenas no futuro próximo;
- Nova York é um exemplo em termos de sustentabilidade hídrica;
- Um Porto Rico devastado pela passagem de um furacão mostra-se disponível para servir de ensaio a uma reinstalação eléctrica 100% dependente de energia solar;
- A nível mundial está a acontecer um crescimento exponencial de pessoas que adoptam uma dieta vegetariana ou vegana estando em curso uma revolução na indústria alimentar tradicional;
- Nos USA “cypherpunks” criam uma tecnologia que originou uma moeda digital capaz de abalar todo o sistema financeiro;
- A Rússia e a China redefinem em conjunto as maiores rotas comerciais mundiais;
Seria muito bom que Portugal e os portugueses acompanhassem estes movimentos que vão redefinir o mundo a médio-prazo. Claro que para isso teríamos de ter uma população formada e informada, que colocasse o orgulho no seu estilo de vida, no seu impacto positivo no mundo, acima do orgulho desportivo, do comodismo do seu umbigo, uma população que da mesma forma que rejeitaria a nomeação de corruptos comprovados para tesoureiros do seu dinheiro não os elegesse para mandatos políticos renovados, uma população que colocasse o interesse comum acima do seu mesquinho interesse pessoal.
Estou certo que um dia aí chegaremos. Até lá continuaremos a desfrutar da relativa tranquilidade do olho do furacão, fortalecendo-nos num presente que em breve será um passado muito diferente do futuro que se avizinha. Quando terminar a tontura deste constante rodopiar constataremos que talvez devêssemos ter aproveitado todo o esforço despendido não a reentrar nos eixos de que saíramos mas sim a encarrilar em novos rumos, mesmo que economicamente menos favoráveis a curto prazo.
Publicado em Escárnio e mal-dizer, Ideias para o País, Mentalidade Tuga
Etiquetas: Apoio Social, Ecologia, Economia, Educação, Europa, Mundo, Sustentabilidade, Vanguarda
Natal Social
Posted by Nuno Faria
Numa quadra propensa à benfeitoria como forma de expiação de comportamento padrão ao longo do ano, ocorreu uma situação um pouco anómala. Em contra-ciclo, exactamente nesta época, foi ‘limpa’ uma das zonas onde o flagelo da exclusão social mais sobressaía desaparecendo como que por magia as dezenas de sem-abrigo que pernoitavam na estação Gare do Oriente em Lisboa.
As notícias oficiais dizem que foram todos muito bem acolhidos por instituições, o que passa uma ideia de que está tudo bem para quem não tem contacto com essas pessoas nem com os meios adequados inexistentes para lhes acudir.
Confesso que fico intrigado. Quem socializou com os sem-abrigo da Gare do Oriente sabe que muitos deles recusavam veementemente a institucionalização, muitos apresentavam até relatos de experiência pessoal, com argumentação convincente, do porquê da sua recusa.
Para quem tem um tecto, rede familiar, comida e conforto, olhar em passagem para uma pessoa em condição de sem-abrigo resulta numa projecção superficial de “e se fosse comigo” que conduz a uma linha de raciocínio de “eu sem-abrigo” muito pouco aplicável à realidade que é “aquela pessoa sem-abrigo”. Intuitivamente julgamos que lhes falta um lar, uma família, rendimentos, conforto. Muitas vezes erradamente. Na verdade não conseguimos projectar ser aquela pessoa sem a conhecer, a sua vida, as suas decisões, as suas convicções, o seu dia-a-dia, até que tenhamos entendimento e legitimidade suficiente para pensar sobre si e a sua condição.
O adquirir deste conhecimento é o passo à frente em relação ao doar surdo-mudo de bens materiais. É o ter de dar um pouco de ti, do teu tempo, da tua intimidade, do teu pensar, do teu ser, quebrar as próprias barreiras mentais, para interagir socialmente com quem normalmente só se interage materialmente. Porque temos ali um ser humano que não se abre com desconhecidos, que se abre com amigos, que conversam, que contam histórias uns aos outros, sem julgamento, apenas pelo prazer do convívio e da troca de ideias.
Tenhamos em conta que o ficar sem-abrigo é um choque inicial, tal como qualquer mudança radical de rotina ou estilo de vida. Primeiro estranha-se, depois entranha-se. A rua quebra. Longos períodos de rua transformam aqueles que assim vivem, alteram parâmetros e padrões de vida, isolam socialmente, formatam o pensamento.
Por tudo isto o que de melhor podemos fazer por pessoas sem-abrigo não é fornecer-lhes periodicamente o alimento, roupas e mantas, que de certo modo são medidas de contenção e não de resolução do problema. Um dar desorganizado contribui mais para o perpetuar do que para o ajudar. Devemos sim tentar resgatar estas pessoas do isolamento social através do fornecimento de tecto e acompanhamento comunitário. Porque aquele “ele” mais não é do que um reflexo do “nós”. E é isso que todos percebemos no Natal.