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A nossa liberdade acaba onde acaba a dos outros

Com o tempo e espaço que temos agora em mãos seria sensato questionar alguns aspectos da nossa existência. Talvez começando pela razão do sujeitar à clausura.

Um bom começo passa por perceber o que se passa no mundo, segundo os registos oficiais esta revolução começou em Janeiro, primeiro na China, Ásia, depois Estados Unidos, chegando à Europa ainda nesse mês, via França, Alemanha, Itália e Espanha. Só passado um mês do primeiro caso em Espanha é que Portugal entra no lote dos países oficialmente COVIDados para a pandemia.

Entre Janeiro e Março foram evoluindo as estatísticas sobre grupos vulneráveis, que permitiam perceber a gravidade da situação para os mais velhos e os com condições de saúde mais vulneráveis, bem como informação sobre o período de incubação.

Inicialmente, segundo os relatórios oficiais, só a China tinha uma situação alarmante, em termos de número de mortes, o que fez com que o mundo Ocidental subestimasse o que aí vinha. Quando no final de Fevereiro disparou em Itália o número de óbitos, já todos tinham sido apanhados de surpresa. Ficou óbvio que, ou haviam muitos mais casos não reportados, ou o tempo decorrido entre os primeiros sintomas e os óbitos deu a ilusão de ser maioritariamente um género de uma gripe relativamente inofensiva.

Esta latência de percepção, do real perigo a Ocidente, fez com que seja muito provável que, na altura em que a opinião pública foi sensibilizada para a reclusão social, muitos já seriam portadores / incubadores, pelo que a instintiva reunião familiar poderá ter perigado os grupos de risco, que deveriam ter sido resguardados antecipadamente, tivesse havido esse discernimento.

“FICA EM CASA!” foi o grito desesperado de uma população desnorteada pelo imediatismo da chegada de um vírus “fulminante”. Uns por medo de que lhes toque a eles ou aos seus, outros por um dever cívico de “suavizar” a pandemia, outros condicionados por pressão política, autoritária e/ou social.

A liberdade individual foi assim anulada por um suposto bem comum, como se todos tivéssemos as mesmas condições para atravessar um recolher prolongado confortável, como se todos fossemos dominados pelos medos e riscos inerentes a viver, como se todos os que pertencem aos grupos de risco estivessem dispostos a sacrificar a sua liberdade, a sociedade e o futuro de muitos por uma hipotética segurança contra o COVID19.

A maior justificação desta paralisia nacional é a de que não queremos o rápido asfixiar de um SNS, que já estava encostado às cordas no seu dia-a-dia, preferindo-se a lenta asfixia da economia e dos portugueses. Uma decisão política fácil do ponto de vista da aceitação popular. Pergunto-me pelo que se medirá o nível do seu sucesso? Falamos em salvar vidas? Quantas? Ou sobretudo diluir óbitos no tempo?

Quantas semanas terão de passar até que tudo isto seja equacionado? Até que compreendamos que não estamos a falar de uma ameaça que potencie a extinção da humanidade, ou sequer da população de um país? Só em Portugal morrem mais de 100 000 pessoas por ano! O COVID19 irá incrementar bastante estes números ou “roubar” óbitos às doenças que mais matam em Portugal?

Vivemos tempos difíceis para os decisores políticos e população, sendo fulcral uma informação factual e objectiva para que sejam tomadas, de forma transparente, as decisões mais sensatas de acordo com a informação disponível, pensando não apenas no imediato mas também no futuro a médio prazo.

Provavelmente muito em breve veremos uma transição do movimento de “Fica em Casa!” para um “Fica em casa?”. Até lá que cada um encontre o seu propósito de reclusão pois, por agora, sair à rua é um atentado à liberdade e direitos da comunidade.

O Aplauso dos Inocentes

Em resultado da fuga a todo o custo, do contrair de enfermidade severa, é a febre da cabine que avança, indomável sobre a guarnição. Nem toda, pois alguns bravos garantem a flutuabilidade, o guarnecer das refeições, o alinhamento de velas e leme para que não se perca o rumo.

Em isolamento social, voluntário mesmo antes do imposto pela capitania, do alto da gávea condicionada, da janela das cabines cerradas, os mais ilustres, os mais afortunados e os mais vulneráveis aplaudem os seus heróis, mesmo antes do início da odisseia que se prevê atribulada e perigosa. Tal entusiasmo só rivaliza na história com o gáudio das elites romanas, ao encorajar as fileiras de gladiadores que entravam na arena do coliseu. Ambos dispostos a dar tudo pelos outros.

Esses “heróis”, que não o escolheram ser, apenas calhou de originalmente exercerem essas tarefas, trabalharão a dobrar, com risco acrescido, compensando as lacunas, satisfazendo a demanda, daqueles cujo ofício não interfere com o cumprir do serviço mínimo obrigatório à continuidade da navegação.