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Portugal: analogia de um crime

No final de Janeiro assaltaram-me a casa. Foi evento de estreia.
Como não há muito a fazer acabo por digerir a coisa fazendo um exercício de analogia entre o sucedido e o cenário em Portugal.

Os sinais eram evidentes. Assaltos a casas em redor durante semanas. Apesar de tudo nunca coloquei em causa também eu ser um alvo possível. Até porque tenho três cães de guarda. Tinha algum dinheiro em casa que estava na primeira gaveta da cómoda do quarto sem qualquer tipo de camuflagem.

Os ladrões aproveitaram um dia de intempérie, com muita turbulência e chuva torrencial, para executarem o roubo. Dominaram os cães à pedrada e com spray atordoante. Tentaram arrombar a porta até que rapidamente detectaram uma janela com trinco avariado, entraram, foram directos ao quarto, encontraram o dinheiro e sairam sem mais demora. Um trabalho limpo e rápido sem grandes desarrumos.

Ao chegar a casa tinha vizinhos / testemunhas que viram tudo quando a chuva amainou. Estavam três no meu terreno, dois no carro de apoio à fuga, aparentemente ciganos. Um vizinho que por eles passou lado a lado disse-me que eram assim escuros, com um ar de deliquentes, pensou serem amigos meus que estaria a receber em casa.

Chamei a polícia, na minha zona sou servido pela GNR, e chega um grupo de agentes que posteriormente chama a brigada de investigação pois haviam indícios que podiam ajudar numa investigação em curso. Quando dei por mim tinha 5 polícias em mini-comício no corredor discutindo o roubo das suas condições feito pelo estado e a necessidade de agir com manifestações de larga escala.

Posteriormente os investigadores foram falar com todos os vizinhos / testemunhas e qual não é o meu espanto quando quase todos os relatos minuciosos sobre a forma de agir e aspecto dos ladrões se reduzem a uns “não vi muito bem porque estava ao longe”, por vezes com testemunhos precedidos de um “não me envolva no processo que não quero ter nada a ver com isso! Não quero perder tempo nem gastar dinheiro para ir a tribunal!”. Um dos vizinhos que tinha passado pelo carro dos ladrões disse que não podia deslocar-se ao posto da GNR no dia seguinte para olhar para umas viaturas porque era desempregado e não podia suportar a deslocação.

No relatório da GNR, que fui assinar no FDS seguinte, relatavam que tinha sido assaltado por dois indíviduos segundo relato de vizinha que não pôde ser identificada. Quando coloquei em causa o relato, uma vez que eram cinco e que só não identificaram quem não quiseram, lembraram-se que tinha lá estado a brigada de investigação logo não fazia mal a discrepância. Eles só têm de relatar as coisas mais ou menos como aconteceram. Os investigadores é que são os especialistas. Além do mais se forem apanhados, e seguirem para tribunal, são soltos antes sequer do agente acabar de preencher a papelada protocular.

O que tem isto a ver com Portugal?

Este relato transpira o tradicional ser Português. A vida corre-nos bem porque raio nos devemos preocupar com os sinais de degradação do ‘ecossistema’ que ocorrem em nosso redor? Tal como aconteceu na era de bonança em que o crescendo generalizado das condições de vida nos cegou para a hecatombe que haveria de vir.

As nossas mais valias são por vezes desbaratadas estando à mão de semear daqueles que as cobiçam secretamente, aguardando a oportunidade ideal para as tomar facilmente. Ao estilo das recentes privatizações. Aparentemente a culpa é dos políticos e decisores locais, no entanto os beneficiários são organizações mundiais organizadas peritas em pilhagem legal.

Em teoria as nossas forças armadas estão de prontidão preparados para o que der e vier. No entanto há o real risco de o equipamento ser inadequado, desiludindo quando posto à prova por uma situação real.

Tal como nós, os com pele mais ‘tonificada’, os políticos são todos iguais, todos a mesma escumalha. E desta forma preferimos não participar em actos eleitorais, ao invés de arriscar dar oportunidade a ideias menos usuais defendidas por outros políticos. Ironicamente com o voto em branco ou abstenção acabam por dar ainda mais força aos partidos históricos da nossa democracia.

“Não me pagam para isto!” Um clássico para justificar o laxismo e a incúria. Entra-se em pescada de rabo na boca. No imediato não se trabalha o que se deve porque não nos pagam o que é justo, no longo prazo dá-se o vice-versa e a razão perdeu-se pelo meio. Até nas manifestações há filhos e enteados e aparentemente a indignação de uns suplanta-se à de outros.

Os portugueses são lestos a exigir justiça ao mesmo tempo que vemos, toleramos e compactuamos com injustiças. Todos prestamos e usufruimos dos nossos pequenos compadrios, sem ponderar que independentemente do valor do favor estamos a minar os alicerces da imparcialidade e igualdade.  Aparentemente a justiça dá demasiado trabalho, demasiadas dores de cabeça, tendo muito pouco retorno. Pelo que nos damos por contentes em ladrar e rosnar enquanto o saque trespassa.

Nós olhamos mas não vemos, temos os dados todos ao nosso dispôr mas não pensamos nem planeamos. Fiamo-nos nos especialistas internacionais que disso se ocupam a tempo inteiro. Homens zelosos pela manutenção da democracia e soberania em cada estado membro, desde que os números o permitam.

Dá para concluir alguma coisa desta confusão?

A solução para ambas as situações começa a caminhar para o sujar de mãos. Se queremos tirar os bandidos do poleiro talvez a solução seja um tiro certeiro. Diferentes pessoas de diferentes meios e diferentes classes sociais cada vez mais expressam o seu desabafo em forma de

“Isto só lá vai quando alguns gatunos aparecerem esticados no meio da rua…”

O que quer dizer que o sistema poderá voltar-se contra ele próprio. Apesar de artilhado para desencorajar os mais audazes ele começa a fraquejar. Se as forças de protecção têm meios cada vez mais inadequados, se todos embrutecemos iguais, se as testemunhas caminham para cegas, surdas e mudas desinteressadas, se não vale a pena planear o futuro martirizando-nos com a austeridade presente, em breve surgirá alguém, anónimo, invisível, sem nada a perder que num acesso espontâneo de loucura, transfigurada de clareza iluminada, deixe um ou dois estendidos no meio da rua.

E talvez aí todos vejamos o quão estamos errados.

alienation & revolution