Monthly Archives: Junho 2017

Crise de Julho

Um venerável ancião, senhor de vastos recursos e riquezas, muito influente junto dos seus vizinhos, foi certo dia afrontado por um pequeno estado soberano. Insignificante quando comparado com o ultrajado império, o insolente reino apoiara os terroristas que assassinaram o sucessor e herdeiro de Francisco José I, Imperador da Áustria, Rei da Hungria, da Croácia e da Boémia. A Casa dos Habsburg-Lothringen, dinastia com mais de dois séculos, vingar-se-ia da afronta. A Sérvia pagaria pela sua ousadia. Violenta e breve, a punição seria exemplar, circunscrita e regeneradora. Outra potência, o Império Alemão, dera o seu aval e incondicional apoio ao plano disciplinador. Aos sérvios foi então enviado “o mais formidável documento”, ponderado e redigido para ser inaceitável, um ultimato com um único propósito, a guerra. Aquela que seria uma contenda local, rápida e decisiva, culminou no primeiro dos conflitos militares mecanizados à escala global, a Primeira Guerra Mundial, a mais mortífera, devastadora e ruinosa até então. Um monumental exemplo de estupidez humana.

Se nas próximas semanas este exemplo com mais de um século parecer actual, não estranhe, é mera coincidência. Corre hoje, noutras e longínquas paragens, um ultimato a um pequeno reino. Insolente, terá apoiado o terrorismo, terá também afrontado uma poderosa dinastia com mais de dois séculos, também ela liderada por outro nobre ancião, rico em recursos e influência. Uma vez mais, perspectivam-se interesses locais e pontuais, negligenciando a imprevisibilidade das consequências à escala global. Esperemos que ao contrário do que afirmou Einstein, apenas o universo seja infinito e a estupidez humana encontre limite a tempo.

Lamento mas não doo

O ciclo repete-se, cenário de tragédia potencial, tragédia efectiva, solidariedade catártica, reconstrução do cenário inicial.

Lamento mas desta vez não doo. À custa da minha reputação social tentarei quebrar o ciclo. Farei-me de sonso. Fingirei acreditar no sistema e nas comunicações oficiais. Confrontarei o sistema com a sua própria ilusão, exigirei dele o que é esperado.

Creio assim que a previsão meteorológica identificou o potencial problema atempadamente tendo sido executados todos os protocolos de prevenção para o que seria uma “tempestade perfeita”.

Confio plenamente que as forças no terreno estavam devidamente articuladas, dotadas de todos os meios de comunicação necessários à evacuação de populações em risco através de rotas seguras.

Fico descansado com o facto das populações em zona de alto risco receberem formação sazonal sobre o que fazer em caso de emergência catastrófica, apesar da hipótese remota desta eventualidade tendo em conta a gestão florestal preventiva e adequada.

Atribuo à ira dos deuses o infortúnio de tantas mortes num curto espaço de tempo, julgo que segundos de profanidade divina, recusando a possibilidade de que estas tenham ocorrido ao longo de horas, espaço temporal suficientemente lato para que mesmo meros humanos, capacitados e organizados, conseguissem retomar grande parte das rédeas do seu destino.

Jubilo com as garantias dadas por protecção civil e governo de que foi feito tudo o que devia ser feito, bem como de que não faltaram meios para o combate ao fogo nem faltará o apoio de todo o tipo às vítimas e lesados, recorrendo-se aos fundos de emergência nacionais e internacionais existentes para esse efeito.

Confio totalmente na retaguarda logística que deve apoiar as forças no terreno garantindo a todo o momento o fornecimento autónomo de mantimentos, bebidas e outros consumíveis de alto consumo nesta altura.

Agradeço a objectividade honesta, assertiva, transparente, do jornalismo, da comunicação das entidades oficiais, direccionadas a uma população formada num sistema educacional de excelência que a torna intelectual e emocionalmente capaz de lidar com a realidade.

E toda esta organização, todo este conhecimento técnico, todo este profissionalismo, garantido pelo simples cumprir das minhas obrigações fiscais!

Que pena tenho daqueles países que dependem exclusivamente da boa vontade, da solidariedade local e nacional. Onde os bravos se deslocam para o terreno sem saber se terão o que comer, o que beber, onde dormir durante a sua deslocação, onde não existe apoio logístico de armazenagem de raiz nem para guardar picos de donativos caóticos caso a população decida responder aos apelos sofridos. Pobres países onde grandes empresas, delapidadas por uma gestão baseada em boa vontade, esventradas de milhares de milhões de euros que acabam escorridos do orçamento do Estado, abrem apesar de tudo simpáticas contas solidárias para colar a sua marca à boa vontade do bom povo contribuidor, onde as linhas de valor acrescentado solidárias continuam a gerar valor acrescentado para terceiros, onde associações de solidariedade correm o risco de colocar em causa as sua poupanças milionárias, os seus avultados investimentos financeiros, se forem chamadas à participação de larga escala em acções beneméritas. Afectuosos países onde até a comunicação social, as entidades oficiais, baseiam o seu discurso numa condescendência branqueadora de falhas porque não se pode correr o risco de causar a revolta nas boas gentes, nas boas vontades, sobretudo quando ainda agora começou a guerra que de tanta carne para canhão vai precisar.

Felizmente estou no meu idílico Portugal. Onde o Estado, contribuintes, jornalistas cumprem o seu papel. Sei que foi difícil chegar aqui. A dado momento foi preciso o mais complicado dos tipos de afecto. O dizer não a um recorrente estender de mão. Forçando os traquinas a perceber que não podem mais depender, nem dispor, da vida, da vontade dos outros, fazê-los perceber que detêm nas suas mãos todo o poder para a mudança e definição das coisas, tal como foram mandatados em lotadas eleições. Não há construção de carácter como o choque frontal com a responsabilidade própria, com as consequências directas dos próprios actos. E pensar que tudo começou com um angustiante colectivo  “Lamento mas não doo”.

 

Harry Potter

Um caso de incomparável sucesso na passagem da literatura à 7ª arte, o clássico do cinema de hoje teve, ao que se diz, influência lusa. A autora, a escritora J.K. viveu entre nós, inspirou-se em figurões e paisagens da nossa terra. O êxito comercial do primeiro livro teve continuidade nos subsequentes. Um feito raro na literatura juvenil, a saga facturou a uma escala sem precedentes na era digital. A chegada ao cinema foi por isso natural.

Nesta saga, um jovem bruxo, Harry Potter de seu nome, descobre que vive no mundo das pessoas comuns, dos chamados trouxas. A fim de aprender mais feitiços, o nosso herói entra no mundo da magia, ingressa na melhor escola lá do sitio, o caro e exclusivo colégio de Hogwarts. São estes anos de internato, de vida dura e austera  que os filmes retratam com mestria, dando corpo à fantasia de um mundo incrível, povoado por terríveis monstros, magos, bruxos e bruxas, feitiços e maldições. Ao jovem aprendiz a banalidade não lhe serve, muito embora possa ser útil, pois quanto mais trouxas melhor, mais fácilmente cria valor ao accionista: A energia não é cara, os trouxas é que vivem em barracas!

Chegado à idade adulta, faz-se pagar bem por cada truque de magia, eficaz como poucos, soma triunfos e lucros para a companhia. Nenhum accionista ficou por enfeitiçar, não faltaram prémios de gestão, mas qual grande líder, ficámos hoje a saber que afinal partilha o mérito. Garante que não houve decisão que não tenha sido colegial…