Monthly Archives: Dezembro 2017

Vulgaríssimas

Na terra das fundações sem fundo, isto é, sem fundos, cabe ao hospedeiro, leia-se o Estado, garantir a sobrevivência das bem-intencionadas instituições de beneficência e solidariedade social. Uma relação previsivelmente simbiótica, ou seja, benéfica para ambas as partes, oferece o apoio possível àqueles que carenciados de algum tipo de ajuda justificam a existência da instituição benemérita, enquanto não raras vezes, por ausência de verdadeiro espírito cívico, proporciona confortáveis posições sociais e económicas a uma ínfima parcela de indivíduos que as dirige. O escrúpulo, ou a falta dele, é característica presente em todos os sectores de actividade, mas quando o objectivo é o auxílio ao próximo, a sua ausência é absolutamente intolerável.

Contudo, entre nós, há mais do que condescendência para com o abuso, mesmo nas instituições cujo propósito é apoiar quem precisa. Aparentemente, nem sequer chega a ser necessário obra feita para gozar de salvo-conduto quando se usurpa os meios que lhes são confiados. A aparência basta. Juntam-se assim dois factores: a nobre causa e a notoriedade do empreendedor de obra social. Será regra? Quero acreditar que não, quero manter a convicção que há e continuará a haver quem procure fazer a diferença sem visar a vantagem pessoal, seja ela social, económica ou até do ego, mas sei, e não é de hoje, que mesmo as causas mais nobres são frequentemente contaminadas por parasitas. O que mais me choca não é tanto a existência deste tipo de praga, mas sim a complacência com que todos nós, contribuintes e cidadãos deste país a encaramos. Temo que o “escândalo” do momento, ao invés de contribuir para a consciencialização, tenha de facto um efeito anestésico semelhante à picada de muitos parasitas. Face à impossibilidade de por magia por fim às desigualdades, mais nefasto que a indiferença será a descrença na solidariedade. Não nos deixemos contagiar pelo frenesim mediático, tão volátil como sensacionalista, e procuremos analisar além do imediatismo.

Sejamos pragmáticos. Nem todos os desafios se compadecem com o voluntarismo e o trabalho pro bono. Causas há que carecem de pessoas capazes e empenhadas, a tempo inteiro, obviamente remuneradas. Por outro lado, quando a missão solidária visa apoiar um grupo muito restrito de pessoas, que consequentemente proporcionam um baixo retorno político, os poucos votos que directamente mobilizam obrigam à sensibilização e influência. O chamado lobby acarreta obviamente custos, financeiros e outros, os favores. Não sejamos hipócritas, há fins que justificam os meios. Por estranho e paradoxal que possa parecer, estas necessidades de contexto, sendo uma realidade prática, constituem muitas vezes a justificação que encobre o abuso perpetrado por uma espécie vampiresca, a vulgaríssima carraça. Não nos iludamos, erradicar a praga é uma luta tão urgente como eterna, pois nunca hesitarão em matar o hospedeiro.

O empresário perfeito – título póstumo

Imaginemos um grande empresário português que tem a visão de construir o primeiro hipermercado em Portugal, confirmando-se a aposta certeira em termos de investimento. Rapidamente se multiplicam o número de hipermercados surgindo depois centros comerciais de grandes dimensões. Este novo paradigma revoluciona os hábitos de consumo dos Portugueses. Num curto espaço de tempo as ruas das cidades perdem grande parte do seu movimento pedonal, a maior parte do pequeno comércio local, várias praças e mercados municipais, são forçados a encerrar pois não conseguem competir com os baixos preços e concentração da oferta oferecida por estes novos espaços.

Para os consumidores era um maravilhoso novo mundo, nunca se comprou tanto com tão pouco!

Nos bastidores sofriam os fornecedores, esmagados por uma enorme pressão comercial que lhes permitisse ter acesso às, agora únicas, grandes montras de exposição e escoamento dos seus produtos. Alguns cedem, outros ficam condenados à falência, sem nunca faltarem produtos nas prateleiras. O consumidor compra o que houver, isso é garantido.

Nos centros comerciais a estratégia foi outra. Concentrar os mais variados tipos de lojas, provavelmente pagando uma renda justa, com uma pequena contrapartida, ter acesso aos principais indicadores de negócio de cada uma das lojas, porque obviamente essa informação é de vital importância para a gestão sustentável do empreendimento. E assim, durante alguns anos, comerciantes abençoados puderam servir de cobaias num tubo de ensaio que permitiu definir quais os tipos de lojas mais rentáveis naquele novo ecossistema comercial. Uma vez feita a prova de conceito criava-se uma marca própria que substituía as pequenas lojas, num investimento mais do que garantido. E assim os grandes centros comerciais deixaram cada vez mais de ter pequenos comerciantes, concentrando sobretudo marcas próprias e outras grandes marcas, âncoras, contra as quais não valia a pena competir.

Uma vez seca a competição este empresário pôde concentrar-se em desenhar formas de potenciar o consumo, através de contínuas e desorientadoras acções promocionais. Preços em constante flutuação, uns para baixo, outros para cima, numa matemática manhosa cujo resultado para o consumidor só pode ser devidamente percepcionado se olharmos para a curva de evolução dos lucros como uma curva de evolução dos gastos e a compararmos com a curva de evolução dos rendimentos das famílias ao longo dos anos.

Este empresário criou assim um império milionário, tornando-se num exemplo virtuoso. Não só dinamizou a economia através da construção dos seus espaços comerciais, do incentivo ao consumo, do aumento do crédito ao consumo, como garantiu no processo a criação de largos milhares de empregos, conseguindo a concentração da circulação de consumidores e dos agentes que compõem o tecido económico no sector do retalho nacional.

É por toda esta criação de riqueza, simplificação de processos, entretenimento das hostes, que, justamente, a classe política lhe presta a devida homenagem. Já aos fornecedores, trabalhadores e consumidores passa-lhes um pouco ao lado de tão alheados que estão, seja na labuta para garantir produção e sustento, seja no desfrutar do grandioso ecossistema comercial que lhes foi oferecido por este homem. Mais uma prova do sucesso da sua visão estratégica de se tornar num dos pilares de uma sociedade cega e inconscientemente consumista.