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Quem o alheio veste

Foi por encomenda do armador alemão Hamburg-Amerika line (HAPAG) que nos últimos dias do século XIX a sua quilha foi assente nos estaleiros da William Gray & Company Ltd em West Hartlepool, Inglaterra. Lançado no primeiro ano do século XX, 1901, o navio foi baptizado “Numantia”, numa premonitória homenagem à lendária cidade de Numancia, na antiga província Romana, Hispânia. Com 122 metros fora a fora, 16 metros de boca, quase 4500 toneladas de arqueação bruta e aproximadamente 8000 toneladas de arqueação líquida (Sistema Moorsom), o novo cargueiro a vapor, então moderno e eficiente, serviu a nação germânica até Agosto de 1914. A primeira grande guerra ditou o bloqueio naval Britânico a todos os portos Germânicos. Impossibilitado de regressar à Alemanha, o navio rumou ao porto de Mormugão, colónia ultramarina de Goa, Índia, onde lhe foi concedido refúgio ao abrigo da neutralidade que a jovem República Portuguesa mantinha no conflito.

"Numantia", H.A.P.A.G., 1901

Eis que em 7 de Fevereiro de 1916 tudo se altera. É promulgada a lei nº 480, ao abrigo da qual o governo Português legítima a “requisição de todos os meios de transporte julgados indispensáveis à economia nacional”. Este primeiro passo rumo à beligerância, à época justificado pela necessidade de salvaguardar o comércio colónial, mais não foi que um sintoma da nossa condição de protectorado Britânico. Provou que a jovem república, depois de muito criticar o deposto regime monárquico, não se libertara da subserviência ante o Reino Unido. Portugal observa assim a velha aliança, mas não declara guerra ao Império Germânico, decreta. A 23 de Fevereiro de 1916, o governo manda publicar o decreto nº 2229, o qual determina a apreensão dos setenta navios Alemães refugiados em território Português. A resposta Alemã, sob a forma de ultimato, exigindo a devolução dos navios foi ignorada, pelo que a brilhante iniciativa legislativa, obtém o resultado desejado: a Alemanha declara guerra a Portugal.

A Nação aceita o enorme custo da guerra em troca de uma vasta e moderna frota de navios mercantes, muitíssimo superior à capacidade de investimento e produção naval nacional. Milagrosa resolução desse défice. É neste contexto, com a missão de gerir a nova frota, que nasce a companhia “Transportes Marítimos do Estado” (T.M.E). Contudo, negociações anteriores ao iluminado decreto, garantem o usufruto de 80% desta frota de navios ao Reino Unido, através de contracto de fretamento com o armador Furness, Withy & Co, o famoso contrato Furness. A frota alemã servirá sobretudo o interesse Britânico: à razão de um preço por frete muito inferior aos valores de mercado (<50%) e com prémios de seguro ridiculamente baixos. Acresce a fórmula de cálculo, que em ambos os casos, frete ou perca do navio, tinha por base a arqueação bruta e não a líquida, isto é, com base no peso do navio e não na sua capacidade de carga (a única relevante para o fretador). Condições ruinosas para o armador estatal, válidas ao longo de um prazo singelamente definido por “Seis meses após o fim da guerra”. Uma PPP com garantias do estado Português, em benefício do Britânico e com o patrocínio da iniciativa privada Alemã.

Uma vez reparados os danos resultantes da sabotagem perpetrada pela tripulação teutónica, o “Numantia” foi rebaptizado “Pangim”, em homenagem à cidade Indiana do Império Colónial Português. Recebe tripulação Portuguesa e serve os aliados durante a vigência do contrato Furness, período ao longo do qual vive múltiplas privações e vergonhas, normalmente resultantes da sistemática falta de pagamento do armador estatal aos seus fornecedores. É conhecida uma longa e ruinosa estadia do navio e sua tripulação no porto de Antuérpia, Bélgica. Nada que se compare com o caricatural exemplo do vapor “Sines”, que em Cardiff, País de Gales, esteve arrestado de Fevereiro de 1921 a Janeiro de 1922, vivendo a tripulação em precariedade tal que se viu obrigada a carregar terra para bordo, e nela plantar uma horta em pleno convés do navio. Avulsos exemplos das metodologias e práticas em vigor nos T.M.E, organização verdadeiramente a saque por funcionários e agentes, com um histórico de fraudes e roubo tão vasto e diversificado que pede meças em criatividade e audácia com qualquer outro “caso” da actualidade. É perfeita a analogia com o desfecho do caso BPN: No fim pagámos todos.

Após um longo e complexo processo de liquidação dos T.M.E, o navio é devolvido à iniciativa privada em 1926, ano em que é adquirido pela Companhia Colónial de Navegação (C.C.N.). Recebe então o terceiro e último baptismo, “Cassequel”, também em homenagem a uma cidade do Império colónial, em Angola desta feita. Fez carreira na Europa, arquipélagos Atlânticos e na África Ocidental Portuguesa, navegando sem sobressaltos até 1933. Foi em Agosto deste ano que o navio enfrentou um grave incêndio, deflagrado nos fardos de palha destinados à alimentação dos animais que transportava. Navegando de proa ao vento e com a intrépida intervenção da tripulação o fogo foi controlado. O navio chegou a bom porto pelos seus próprios meios, mas o incêndio foi de tal forma violento que danificou seriamente a superstrutura e destruiu completamente o mastro grande, a meia-nau. Após a reparação, o “Cassequel” viu a sua superstrutura melhorada pelo que ficou também habilitado ao transporte de passageiros. Foram também adicionadas duas gruas em substituição do mastro perdido. Superado o desafio, melhorado após as reparações, o navio retomou a sua actividade.

A normalidade foi interrompida com o início da segunda guerra mundial. Tendo sobrevivido à primeira guerra, o navio enfrenta a segunda sob protecção da neutralidade Portuguesa. O velho “Cassequel” partiria uma última vez de Lisboa no início da tarde de 13 de Dezembro de 1941. Rumou a sul, em direcção à África Ocidental, com 9 passageiros, 48 tripulantes e uma considerável carga de gasolina a bordo. Comandava Sebastião Augusto da Silva, meu bisavô, pai do pai de meu pai, senhor meu avô. Decorridas mais de 24 horas de viagem, o navio é atacado durante a noite de 14 de Dezembro de 1941, numa posição a mais de duzentas milhas a sudoeste do cabo de São Vicente. O agressor, o submarino Alemão U-108, lançou um torpedo que às ordens do Capitão Kalus Scholz foi apontado à popa do velho vapor, destruindo o leme e a hélice, imobilizando o navio. De pronto foi dada a ordem para abandonar o navio. Arriadas as quatro baleeiras, e apesar de uma delas se ter inicialmente virado, breves minutos bastaram para que todos os tripulantes e passageiros embarcassem nos salva-vidas. Imerso e a coberto da noite, o U-108 nunca foi avistado por nenhum dos náufragos. Através do periscópio, terá o seu Capitão confirmado que todas as baleeiras se afastavam, momento em que ordenou o lançamento do segundo torpedo, desta feita apontado a meia-nau, directo à carga de gasolina a bordo. A enorme explosão partiu o velho vapor a meio, precipitando um afundamento quase instantâneo. Seis dias mais tarde, a 20 de Dezembro de 1941, o navio da Armada Portuguesa, “NRP Douro“, resgata a última das quatro baleeiras. A bordo estavam dez tripulantes, dois passageiros e o meu bisavô, que recebeu com agrado a notícia que todos náufragos estavam a salvo, sem vítimas a registar.

O “Cassequel” cumpriu assim a premonição do seu primeiro baptismo, “Numantia”. O seu arresto em 1916 traiu a neutralidade que o atraíra a território Português, traição devolvida em 1941, com o seu torpedeamento apesar da neutral credencial Lusitana. Qualquer semelhança com a actualidade nacional, é pura obra do destino traçado para a Nação que se fez Estado quando um filho fez guerra à sua mãe. Ouro do Brasil, frotas de modernos navios, fundos estruturais ou moeda única, sabemos que para cada oportunidade estará reservada a respectiva tragédia. É fado, sem saudade ou memória. Por vezes agraciada com as riquezas do mundo, a nau Portugal é com a mesma frequência vítima de si própria. A tripulação não aprende. Ao Leme esteve sempre quem mandou, raras vezes quem sabia mandar.

É sabido que “Quem o alheio veste, na rua o despe”. Porque que o esquecemos tão facilmente?