Pensar além do Pikachu
Há poucos dias defrontei-me com o fenómeno do momento: de repente, pessoas na casa dos 30, a jogarem no telemóvel aquilo que depois vim a saber que era o jogo dos Pokemons. Assisto a conversas para lá da minha capacidade de compreensão: portais, andar de carro a caçar pokemons, não ter mais dinheiro para andar por aí, “ir lá jogar é caro!”, o gajo perdeu aquela zona, ele ganhou aquela zona toda, acabou com o jogo na região… não sei se era tudo acerca do pokemons ou não, mas era sobre uma realidade num mundo virtual. Alertaram-me que estes jogos são bons porque obrigam as pessoas a mexerem-se, a saírem de casa… para jogar, e a ir a sítios para…jogar!
Quando andava na faculdade sabia de colegas meus que jogavam horas e horas no computador, faltavam às aulas, estoiraram playstations por excesso de uso etc… Não quero impôr o meu ponto de vista a ninguém, mas naqueles tempos li livros que me abriram uma visão do mundo, que moldaram as minhas escolhas futuras, que faziam o contrapeso com aquilo que estudava. Li romances que ainda hoje recordo com saudade, li poemas que ainda hoje sei de cor, apaixonei-me pelo Carlos da Maia, vibrei com o Primo Basílio, sorri com a imensa beleza do Adriano, chorei Por Quem os Sinos Dobram e enfureci-me com as Vinhas feitas de Ira mas tive Esperança com a Dignidade Humana.
Não quero impôr a minha visão a ninguém, e não sou pelo utilitarismo de todas as opções. Não existe nada mais delicioso do que poder fazer algo simplesmente porque gostamos, sem utilidade futura, apenas para nosso imenso prazer de gastarmos um tudo em troca de nada simplesmente porque sim e sermos felizes com isso.
Mas não posso deixar de olhar à minha volta e de, dadas as devidas distâncias em termos de preferências entre mim e as outras pessoas, me questionar sobre as imensas formas de alienação social existentes. Programas da manhã e da tarde, onde se discutem assassinatos e violência doméstica em famílias completamente disfuncionais, onde se falam de casos concretos de pessoas que dizem “não quererem trabalhar”, onde se questiona uma bruxa na televisão sobre problemas pessoais, traições do marido ou o futuro de um filho doente. E onde aparece um psicólogo a atacar “ciganos”, num dia banal de degradação televisiva e não muito diferente do habitual, e de repente todos se indignam! Apenas aparece a indignação nesta e noutra situação especifica. As pessoas indignam-se com o ataque aos ciganos mas não se indignaram quando bairros inteiros de ciganos foram destruídos para que os mesmos ciganos fossem metidos em prédios nos quais não queriam viver! Por alguns dias, a caça aos Pokemons teve competição em Portugal com a caça ao psicólogo que ataca ciganos.
A indignação ditada pelas redes sociais é também um meio de promoção do jogo do caça pokemons… de repente a sociedade está infantilizada pela caça de pokemons. A revolução tecnológica que tem incontornáveis vantagens e que revolucionou a nossa vida, trouxe também veículos não só de partilha de informação e distracções conseguidas de forma muitas vezes imediata, sem dificuldades, evasivas e viciantes porque fáceis e envolventes. A dedicação de várias horas diárias a uma realidade virtual é uma forma de alienação social, que desformata o processo de socialização e afasta o individuo da sua realidade e do que o envolve. Obviamente que o processo não é exterminador como os profetas da desgraça proclamam, e encaixa na perfeição na sociedade que construímos actualmente.
Pretendem-se raciocínios curtos e imediatos orientados para o resultado mais eficiente no curto prazo e que encaixa na ideia de encurtamento do tempo e na obtenção da eficiência. Não se pretendem analises muito profundas, daí as noticias serem curtas e rápidas sem grande enquadramento e estrategicamente colocadas para servirem um objectivo: informar e construir uma opinião pública que não ponha em causa a ordem vigente. Promoção de evasões sociais consumíveis facilmente: um programa de televisão onde se apresenta a opinião de terceiros, um reality show aludindo à intimidade humana no grande ecrã, um jogo no computador ou até no telemóvel, com aplicações de fácil acesso com objectivos mais ou menos acessíveis de progressão no jogo e por isso atractivo e viciante. As aplicações que envolvem jogos e internet tem ainda outros perigos, nomeadamente a aceitação de termos onde se cedem dados e informações pessoais a empresas privadas sem que haja um controlo sobre o que é feito com tais informações e sem que haja uma legislação eficiente acerca disso.
Grande parte do que nos é hoje oferecido gratuitamente e de fácil acesso não o é tão gratuitamente e de uma forma ou de outra, mais tarde ou mais cedo, saberemos a conta. A tecnologia está popularizada mas apenas parcialmente socializada. Os meios e os fins da tecnologia, os produtos finais consumidos e vendidos ainda não servem a maioria da população na medida em que quem os controla tem interesses bem diferentes de quem os consome. A distracção de um simples e mero jogo inofensivo que ganha milhões de fãs deve levar-nos a pensar além do Pikachu.
Posted on Agosto 4, 2016, in Deriva, Heróis da BD, Teorias da Conspiração. Bookmark the permalink. 3 comentários.
A alienação é essencial para a subjugação das massas aos interesses e poderes de certas elites. O próprio sistema de ensino tem vindo a ser artilhado para criar esta forma superficial de estar e de ser.
No passado era necessária força bruta controlada, hoje em dia, com o aumento da qualificação, é preciso controlar os seus cérebros, ou pelo menos aquilo com que mais tempo o ocupam quando não estão a trabalhar. Há que evitar revoluções e nada melhor do que o entretenimento constante para alhear da realidade.
É exactamente isso! E o sistema de ensino é uma poderosa alavanca que fomenta a forma de pensar dentro da caixa do que nos é imposto.
“A banalização das artes e da literatura, o triunfo do jornalismo sensacionalista e a frivolidade da política são sintomas de um mal maior que afeta a sociedade contemporânea: a ideia temerária de converter em bem supremo a nossa natural propensão para nos divertirmos. No passado, a cultura foi uma espécie de consciência que impedia o virar as costas à realidade. Agora, atua como mecanismo de distração e entretenimento. A figura do intelectual, que estruturou todo o século XX, desapareceu do debate público. Ainda que alguns assinem manifestos e participem em polémicas, o certo é que a sua repercussão na sociedade é mínima. Conscientes desta situação, muitos optaram pelo silêncio. Uma duríssima radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, pelo olhar inconformista de Mario Vargas Llosa.”