Somos todos burros
Um atentado terrorista contra um jornal satírico e de repente somos todos Charlies, defensores inquestionáveis da liberdade de expressão da sociedade ocidental. A análise é pronta. Cartoonistas a exercerem a sua liberdade de expressão, fanáticos religiosos islamitas a realizarem uma execução sumária por pura barbárie.
Aos Charlies gostaria de perguntar:
Quem foi Maomé e o que representa para o Islão?
Têm noção do nível de ofensa das representações satíricas para um islamita?
Qual a linha editorial tomada conscientemente pelo jornal ao longo dos últimos anos?
Tristemente a maioria dos Charlies não saberia responder a estas questões. Pior do que isso, não quer sequer saber a resposta a tal questões. Não interessa. Falamos simplesmente de desenhos e/ou palavras que tiveram como resposta execuções sumárias! Com a agravante do atentado ter sido perpetado por cidadãos franceses, denunciando que existe actualmente na Europa uma falange de extremistas radicais capazes de passar da simples e tolerada indignação à visceral e brutal violência! Manifestemo-nos já contra este terrorismo condicionador da nossa liberdade de expressão!
O que fica exposto é que a liberdade de expressão vigente é apenas uma liberdade de expressão ideológica. A passagem à prática dessa liberdade de expressão acarreta consequências positivas ou negativas em função do contexto social e/ou político bem como do nível de conhecimento e inteligência do seu executor. É preciso saber do que falamos, onde falamos, para quem falamos e como falamos caso queiramos realmente fazer parte de um processo construtivo de desconstrução das ideologias que consideramos estarem erradas. E estarmos receptivos à desconstrução das nossas. Caso contrário partamos simplesmente para a liberdade de expressão ofensiva sem qualquer outro objectivo que não o chocar e o inflamar dos ânimos. O incendiar de uma fronteira entre duas facções cegas e surdas na relação uma com a outra. Estando prontos para lidar com todas as consequências que isso acarreta.
Ainda a quente, após os atentados em França, reagimos como uma enorme manada de burros. Dizemos o que nos dizem para dizer, fazemos o que nos dizem para fazer, sem questionar ou pensar sobre o contexto, o historial e a motivação do mesmo. Zurramos em reconfortante uníssono.
A base de tudo isto são dois alicerces primordiais: a ignorância e a intolerância
Ignorância porque somos educados desde tenra idade com uma visão muito fechada do mundo e da sociedade. A visão vingente que nos querem impôr para que, nesse modelo, sejamos os cidadãos exemplares de amanhã.
Intolerância porque ao contrário da liberdade de expressão existe uma real opressão à expressão de toda e qualquer ideologia e forma de estar que não esteja em conformidade com a única visão que nos é instruída.
E é este binómio de ignorância e intolerância que nos torna uma manada dócil e fácil de conduzir, sem capacidade de raciocinar para além do óbvio mediatizado.
Se existir real interesse em lutar pela liberdade de expressão então teremos de reformular o processo de educação cívica dos cidadãos de amanhã. A escola deverá assumir o seu papel de formadora ao invés de simplesmente formatadora. As nossas crianças, os nossos jovens, devem obrigatoriamente ter contacto com as principais religiões, modelos de sociedade e filosofias de vida existentes no mundo. Os nossos adolescentes deveriam saber o que é o Catolocismo, o que é o Islão, o que é o Budismo, o que é o Hinduísmo, o que é a democracia, o que é o comunismo, o que é uma ditadura, etc. A diminuição da liberdade de expressão começa exactamente pelo encurtar do leque de opções para a tomada de decisões importantes sobre a forma de olhar e compreender o mundo. Deter este tipo de conhecimento seria também a maior e melhor ponte para o diálogo e respeito pelas crenças e opções de vida dos outros.
Mais, se estão agora preocupados com o controlo da imigração e seu potencial papel nefasto no infiltrar de agentes extremistas radicais capazes de actos terroristas, deveriam então criar um teste de admissão para entrada no território Europeu similar ao que acontece para obter a cidadania americana. Com uma diferença, a bateria de questões abrangeria exactamente o conhecimento sobre as principais religiões, filosofias de vida e modelos de sociedade. A demonstração deste tipo de conhecimento daria alguma garantia de que a pessoa em questão se debruçou por estes temas, tem o conhecimento básico que lhe permita compreender e tolerar o ponto de vista dos outros, com grande probabilidade de ser menos burro, mais Charlie.
Além do que é afinal a liberdade de expressão que devemos defender a todo o custo? Todos devemos ter o direito de dizer/fazer tudo o que nos apeteça sem que existam barreiras nem risco de retaliações intempestivas? É que nesse caso talvez devessemos começar por demolir alguns condicionantes legais que impedem ou dificultam a passagem à prática da nossa liberdade de expressão ideológica. Por exemplo:
- Alguém que opte por ser Vegan, defensor dos direitos dos animais, não pode libertar animais alvos de maus tratos numa unidade de exploração intensiva pois corre o risco de ser preso uma vez que existem impedimentos legais para esse tipo de acção mesmo que éticamente justificável.
- Há quem considere que determinadas personalidades da nossa vida política são palhaços mas não o possa gritar a plenos pulmões, em canais de comunicação ou presencialmente, pois corre o risco de receber um processo penal.
- Posso optar por uma filosofia de vida holística, comprar uma herdade no Alentejo, no entanto vou ter uma dor de cabeça enorme para conseguir garantir que esta seja uma zona livre de caça.
- Uma mulher muçulmana pode optar por uso de Burka, no entanto não pode vesti-la no espaço público de vários países Europeus.
- O jornalismo livre está condicionado por uma linha editorial bem definida que apenas deixa vir a público aquilo que não esbarre com interesses de accionistas, parceiros e/ou patrocinadores.
E tudo isto são formas de abate, não de vidas humanas, mas directamente da liberdade de expressão. Os anti-Charlies mais perigosos não surgem a espaços nem metralham com Kalashinkovs. Estão omnipresentes e servem-se das mesmas armas que os Charlies, palavras, através de notícias, leis e regulamentos que desenham um cenário de liberdade de expressão ilusória com fronteiras devidamente delineadas.
Os Charlies indignam-se com a morte à lei da bala sendo completamente indiferentes à morte silenciosa dos ideais pelos quais se batem, anuindo muitas vezes a serem cúmplices nesse assassinato. Porque, neste grande estábulo instituído, ao contrário da vida de burro, a vida de um verdadeiro Charlie não é pêra doce.
Posted on Janeiro 12, 2015, in Deriva and tagged Educação, Europa. Bookmark the permalink. 3 comentários.
Direitos Humanos = Direitos Basilares, Supremos e Universais
às nossas crianças temos de ensinar a respeitar o individuo e os direitos humanos …. a religião é secundária senão mesmo dispensável ….
a burka, tal como outros símbolos redutores, são atentados aos direitos humanos. acabe-se com as sua aceitação ou justificação.
O resto é demagogia e tentativa de superiorização pessoal…
Talvez devamos respeitar também os indivíduos que integram a sua religião como parte fundamental de si. Cabe a cada um valorizar a sua religião como o entenda. Respeitá-lo é respeitar o indivíduo e seus direitos.
A Burka é um atentado aos direitos humanos? Parece-me estar enganada. A Burka é uma peça de roupa. A imposição do seu uso é um atentado à liberdade individual. Tal como a proibição do seu uso a quem opte por usá-la.
Concordo quando diz que as crianças precisam de aprender a respeitar o indivíduo e os direitos humanos. E para tal precisam de conhecimento sobre os mais variados aspectos religiosos, filosóficos, culturais, sociais e políticos que impactam a definição/interpretação de Direitos Humanos em diferentes pontos do mundo.
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