A aventura da Escócia

Na década de noventa do século passado, era eu miúdo, fui à Escócia. Deambulei pelo campo entre cidades. Não fui piegas. Em vez da praia no Algarve, procurei trabalho na apanha da fruta. Empreendedor, parti à descoberta de oportunidades. Não fui sozinho. Ao meu lado, dois irmãos que a vida me deu a escolher, i.e., amigos daqueles cuja empatia, cumplicidade e afecto se mantém até aos dias de hoje. Um longe nos fiordes, o outro perto, connosco a bordo da nau Portugal. Um abraço aos dois!

Falava-vos da Escócia rural, de aventuras que vivi e que nunca esqueci. Por lá apreciam a audácia, talvez por isso nos tenham acolhido com curiosidade e consideração. Recém-chegados a Blairgowrie, fomos desafiados a tentar um salto (supostamente muito perigoso) sobre as águas do rio Ericht. Fomos. Chegados ao local, o lendário Donald Cargill’s Leap, saltámos. Pareceu-me banal, mas no regresso percebi que todos os escoceses que saltaram depois de nós o tinham feito pela primeira vez. Até esse dia, o salto era um exclusivo do mentor da iniciativa, o bom do John-Paul. Naquela tarde, o clube exclusivo acolheu novos membros e tornou-se Luso Escocês. Na verdade, senti-me em casa.

Como nós, os escoceses são competitivos. Especialmente no desporto. Lembro-me de um aceso debate com um jovem amplamente tatuado que gritava “I’m a real Scott from Dundee”. Era uma ameaça. Debatíamos um lance de futebol, onde alegadamente eu lhe teria pontapeado a canela. Se lhe toquei foi sem querer, mas foi marcada falta. O resto do jogo foi durinho, mas leal. Marquei o único golo da minha fugaz carreira de jogador de futebol de 11. Safei-me sem mazelas. Ainda hoje acredito que o salto no Cargill’s Leap abonou a meu favor. Ah, o jovem escocês era um tudo nada menos jovem que eu, e também bastante menos pequeno. Este meu “amigo” rebelde tinha um comportamento curioso. Reparei que ele, tal como a maioria dos escoceses que comigo colhiam framboesa nos campos, curvava-se numa respeitosa vénia sempre que um determinado helicóptero nos sobrevoava a baixa altitude. A chefe da quinta, a maternal mas exigente Leena, explicou-nos que se tratava de nada mais nada menos que o helicóptero de sua majestade a Rainha Isabel segunda. Espantoso, pensei, têm a alma dividida. Como sabem que ela vai lá dentro, perguntei. A resposta foi esclarecedora: “Não sabemos”.

De Inverness a Edinburgh constatei a contradição entre o orgulho nacionalista e a veneração à Rainha. Connosco partilham os paradoxos das velhas nações – Orgulhosos mas resignados. Somos mesmo parecidos. Divergem e muito na expectativa que têm sobre a gestão dos dinheiros públicos. O bom do John-Paul deu-me sobre este tema uma lição que à data não percebi o alcance. Certa manhã, após partirmos da quinta em que trabalhávamos (propriedade de uma simpatiquíssima e nobre senhora inglesa, cujo nome e titulo nobiliárquico não me recordo), seguíamos de autocarro por uma estrada local, estreita e tortuosa, que não obstante não tinha um único buraco. Parecia uma pista! Comentávamos isto entre nós, em português. O espanto com que o fazíamos atraiu a atenção do nosso maior cúmplice local. Após tradução, a naturalidade e convicção com que John-Paul nos respondeu foi marcante. Peremptório disse “claro que não há buracos. Como pode haver buracos quando pagamos impostos para a manutenção das estradas?” Disse-nos tanto em tão poucas palavras. Na sua simplicidade rural, na sua resignada mas orgulhosa cidadania disse-nos o obvio. Após tantos anos, constato que por cá continuamos sem compreender algo tão simples: Pagamos IVA sobre imposto automóvel (dupla tributação); aproximadamente metade do que pagamos por cada litro de combustível é imposto; pagamos portagens ao atravessar pontes; pagamos portagens para circular em auto-estradas; pagamos imposto único de circulação (único!!); pagamos o estacionamento na via publica nas grandes cidades, e em breve pagaremos também portagem para nelas entrar. Sim, pagamos múltiplas (demasiadas) vezes para o mesmo fim, mas mesmo assim, não faltam buracos nas nossas estradas! Só me atormenta a nossa resignação perante tal contra-senso.

Na Escócia hoje, qualquer que seja o resultado do referendo, o orgulho e alma dos escoceses vão sair reforçados do processo. O resultado ditará a independência ou maior autonomia, nunca menos. O consenso é virtude britânica. O velho império sempre fez da hipocrisia uma arte. Em Londres, a tradição imperial não morre. Nota-se quando comparamos as criticas que tece à União Europeia com os argumentos que apresenta em prol da manutenção da Grã-Bretanha. Estou pela independência, quero que o mundo mude, mas se a Grã-Bretanha ainda existir amanhã, os Escoceses serão garantidamente mais autónomos.
Observemos os níveis de abstenção.

Bandeira da Escócia

About Gonçalo Moura da Silva

... um homem ao Leme. "A minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores. Só me conheço como sinfonia. "

Posted on Setembro 18, 2014, in Mentalidade Tuga, Teorias da Conspiração and tagged , , , , , . Bookmark the permalink. 5 comentários.

  1. Rui Moura da Silva

    Gostei. Mas julgo que como povo somos, infelizmente, muito mais resignados do que eles.

  2. Concordo inteiramente. É natural que, apesar da Escócia ter sido integrada no RU à força, passados tantos séculos se dê uma aculturação irreversível, como irreversível é o sentimento de que não pertencem à Inglaterra mas são parte de um reino unido pela força colonial. Por isso existem incongruências e inconsistências, que afinal são parte do ser humano. Eu sou pela autodeterminação dos povos e esse valor é inalienável. É pena que no século XXI ele seja posto em causa, por questões pragmáticas, como o grande capital financeiro. Por isso e face as ameaças que de que a Escócia foi alvo, da EU, dos EUA, do FMI, da NATO. Porque a Escócia é uma ameaça à postura imperialista e de aliança com a américa terrorista. Porque a Escócia não partilha de muitas ideias do neo-liberalismo e aceita que o Estado deve controlar sectores estratégicos da economia e que desempenha um papel importante no bem estar social. O nervosismo político e financeiro fez-se sentir com a abertura dos cofres à campanha do NÃO.

    Todavia a questão que acho mais importante e que é fulcral é de facto esta vontade da autodeterminação num momento em que a Europa está completamente noutra, numa de alargar as fronteiras e consolidar os estados-membros. E esta vontade de autodeterminação coloca isto em causa. Numa altura em que a vontade política é a da supra nacionalidade, os povos reclamam a repartição da sua nacionalidade. E isto é uma ameaça geopolítica para a EU e para os mercados financeiros completamente globalizados. E não é só a Escócia. Irlanda do Norte, País Basto, Catalunha, Galiza, Córsega! Para nós, portugueses desde 1143, esta é uma realidade que nos é difícil compreender, mas pela Europa existem muito mais nacionalidades do que países. Alguns políticos sentados no Parlamento Europeu chegam a falar no “fantasma das nacionalidades”… são uns idiotas chapados. Isto de querer ser-se independente é a afirmação de um povo, de uma identidade, de uma cultura. Infelizmente vai contra o sistema económico vigente e o poder político por ele alimentado. Mas o mais importante não é votar com medo, como alguns escoceses o deverão ter feito. O que seria democrático é se eles efectivamente querem isso, sem terem de se preocupar com as consequências que a sua vontade implica. Fica adiado. Mas hoje a Escócia não é a mesma de ontem. Nisso estou de acordo.

    • São de facto uns idiotas chapados. A UE deveria ser uma nação de nações, mas não é. Por este caminho implode. A UE não têm a “cola” que une a Grã-Bretanha, por mais robusto que aparente ser, o poder centralizado não é democrático, logo é frágil. Ser um estado-nação poderá ser vantajoso para Portugal.

  1. Pingback: Preparada para este referendo hoje? | ao Leme

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

%d bloggers gostam disto: