Regresso às Aulas
Hoje foi a abertura oficial do ano lectivo. E como neste último ano algumas coisas me têm levado a pensar e a questionar o nosso sistema de ensino, decidi escrever sobre ele hoje. A crise do país, este sentimento de inevitabilidade, esta sensação de impotência, esta sensação de ser levado na corrente e depois esta vontade do não querer saber, do não querer ouvir mais, este esgotamento de uma situação que parece não ser ultrapassada… Que futuro existe para um país onde os jovens não encontram futuro? Às vezes ponho-me a pensar o que, dadas as circunstâncias, a crise no ensino e as duras batalhas dos professores, terão eles a dizerem aos alunos? Que futuro mostrarão os professores aos seus alunos? Que futuro verá um professor nos alunos se tiver em casa um filho licenciado que não consegue encontrar trabalho? Ou se tiver o cônjuge desempregado? Que esperança transmitirá um professor se ele mesmo apenas conseguir sobreviver com o seu salário, sem saber se para o ano será colocado?
Pus-me a pensar nisto tudo e noutras coisas. Pensei em algumas conversas que tive com professores que conheço. Um dizia-me que o ensino actualmente é castrado de ferramentas do pensamento e da transformação. A história política é passada para segundo plano, e isto é corroborado por outro professor que conheço. O programa de história, dizem ambos, não tem interesse. O primeiro luta contra o que diz ser um determinado tipo de programas e afirma querer ensinar os seus alunos a pensar, a questionar, quer dar-lhes ferramentas de análise, transmitir-lhes as linhas do pensamento e das diferentes ideologias que tantas vezes estão escondidas e por desvendar. É professor de filosofia. O segundo diz que o programa de história não tem interesse, que o ensino da história cada vez perde mais importância e que os conteúdos são cada vez mais práticos e pouco contam sobre os períodos quentes de transformação política (que é o que ele mais gosta), mas cada vez falam mais de transformações tecnológicas. É, como será fácil de perceber, professor de história. A sua visão para o país é desesperançosa, seremos sempre um país de tolos diz, e transmite aos seus alunos que o futuro estará lá fora, pensa que na Ásia se ganha bem e será um bom destino para os alunos, ou quiçá para o filho que frequenta o 2º ciclo. O primeiro, o professor de filosofia, quer ao contrário, acreditar num futuro melhor, mas a sua situação laboral é difícil, o ensino público está em processo de destruição, vive e sofre com o desrespeito pela sua classe que perde autoridade em frente dos alunos. Com as turmas maiores sobram professores, e o desgaste dos anos já ele o sente na pele, e afirma quase resignado, que o ensino já não tem lugar para ele. Perdeu o encanto pela sua profissão. Cansado de lutar contra os programas e de ensinar tanto para lá deles, sentindo muitas vezes represálias por isso, e agora esmagado pelas condições sociais, sente-se vencido! Mas sei que no fundo do seu coração existe aquela chama de esperança na transformação social, e sei que, por mais triste e esgotado da luta por um ensino que forme acima de tudo cidadãos, nunca mas nunca deixará de passar aos seus alunos a certeza da mudança na sociedade.
E a propósito destes dois exemplos, lembrei-me do poema da Natália Correia, Queixa das Almas Jovens Censuradas, que na voz do José Mário Branco marcou uma geração e é o lamento dos jovens a quem é cerceada a liberdade e representa uma critica ao ensino no tempo do Salazar. O que até vem a propósito, uma vez que tenho ouvido aqui e ali, do Durão Barroso, do Crato e de outros membros do governo, afirmações de que o ensino no tempo do Estado Novo era mais eficiente e servia melhor as necessidades do país, ou que o ensino dual é o que melhor responde às necessidades do mercado de trabalho e da economia. O tipo de ensino dual que a democracia veio quebrar, servia de facto melhor algumas necessidades, não certamente a dos estudantes nem as do país, mas as de uma classe que dominava a economia. Reprodutor social, canalizava para a escola comercial os filhos das pessoas ligadas ao comércio, e para a escola industrial os filhos das classes ligadas à industria. Apenas uma taxa muito pequena chegaria à universidade, a maioria seguindo as pisadas dos familiares. Ou seja, os filhos seguiam as pisadas dos pais, que normalmente lhes arranjavam trabalho. É o que existe na Alemanha! Reprodutor das classes e das desigualdades, praticamente congelou a ascensão social. Ao contrário, a democratização do ensino possibilitou uma promoção social nunca antes pensada, filhos de operários que se tornavam em doutores, filhos de comerciantes que viraram médicos… Uma verdadeira transformação social. Uns dirão que isto é um país de doutores, mas a mesma legitimidade teríamos para dizer que isto seria um país de analfabetos em 2001, aquando dos censos (página 14), cuja percentagem de população com um diploma académico era similar à população analfabeta. É uma espécie de inveja social, até porque a realidade é que em termos de escolaridade ainda continuamos atrasados, apesar do rápido desenvolvimento que a democracia trouxe. Mas temos que ver que partimos de uma base extremamente baixa.
É incrível como a educação varia em função da ideologia. Num período de democratização, o ensino expandiu-se para todos. Muitos dirão que esta expansão teve como custo a diminuição da exigência, mas isso não é um fenómeno só português. Na verdade a questão da exigência vista de perto pode parecer grave, mas se nos distanciarmos perde importância. Mas é um custo, mas baixo quando está em causa a expansão para a inclusão de mais pessoas, e a educação para todos é algo que não tem preço! Com a democracia instituiu-se o direito ao conhecimento! Vivemos hoje sob o paradigma mundial do “life long learning”, por isso desinvestir na educação é não querer que as pessoas estejam dentro do paradigma, é chutá-las para a margem, é dizer que elas não têm lugar naquilo que é tido como pensamento dominante. Por isso, quando governantes põe em questão o desenvolvimento do nosso sistema de educação que foi e ainda é um dos melhores, é dizer que esta inclusão foi mal feita, foi ilegítima. Dizer que o sistema de ensino não serve as necessidades da economia, significa tão somente que a economia e os empresários não acompanharam os tempos e que continuamos numa economia atrasada com elevadas necessidades de mão-de-obra não qualificada. E isto só pode ser explicado por uma realidade, é que os empresários portugueses são muito pouco qualificados e descapitalizados. E é dizer que os colossais fundos estruturais que deveriam ter consolidado de uma vez por todas a nossa Industrialização (mais do que atrasada) mais não fizeram do que adiá-la definitivamente para um depois de uma terciarização já consolidada, mas cuja riqueza criada fica muito aquém das nossas reais possibilidades e necessidades. Isto não significa que o ensino não possa ser reformado, mas para melhor, não deixando para segundo plano umas áreas do conhecimento e determinado tipo de temas para passarem à frente de outros. A matemática é fundamental, mas a filosofia também… ambas são fontes de raciocínio. O inglês é importante mas a história também. Conhecer a Revolução Cientifica é importante mas saber da Revolução Francesa é fundamental!
E é por isto que este saudosismo do ensino dual fez-me pensar no actual ensino e no quanto ainda falta para ele se cumprir e no papel fundamental dos professores numa sociedade. Porra pá, estão a tentar destruir aquilo que ainda não se efectivou! Já parece a nossa Industrialização! O ensino deve dar ferramentas de pensamento, de reinvenção, de transformação. Eu frequentei uma escola cujo lema era “formar bons cristãos e virtuosos cidadãos”, e o lema de ensino deve ser efectivamente formar virtuosos cidadãos (vamos deixar cair os cristãos, que o ensino é laico e muito bem)! E o que é um virtuoso cidadão? Virtuoso cidadão vai para além de votar, vai até ao transformar. Mas para transformar é preciso sonhar! E há que saber que não só é permitido sonhar como que é possível transformar sonhos em realidade. É possível transformar! E mesmo que o sonho não se concretize por completo, o que for feito para a sua concretização já é transformação! E é preciso que saibam que isso não só não é pouco, como é muito, muitíssimo, e que vale sempre a pena! É preciso saber acima de tudo aquilo que se quer da sociedade. Transformar é trabalhar todos os dias para uma sociedade melhor, no trabalho, na família, nos amigos, no café, no super-mercado. É espalhar uma ideia! Mas é mais do que isso! É mais do que fazer! É acreditar! É negar as inevitabilidades! Na sociedade elas não existem! Não existem inevitabilidades! Não existem! Isto não é um fado a que estamos condenados! Mas isto que vivemos também não é uma fraude! É um caminho que se escolheu. Mas por alguém um dia ter escolhido este caminho não significa que por aqui continuemos a caminhar! Nem se quer tem que significar que o caminho estava errado, pode simplesmente querer dizer que este caminho já nada tem para nos oferecer! E podemos sempre escolher outros caminhos, e trilhar novos rumos e novos caminhos. E é nesta crença no futuro, nesta negação das fatalidades, nesta certeza de que podemos sonhar e trabalhar por um amanhã com um futuro que vale a pena que os professores são fundamentais. Os miúdos não se podem sentar nos bancos da escola a pensar que o seu país os educa para emigrarem, que aqui não haverá trabalho, que aqui não há lugar para serem felizes! Não há lugar nenhum onde valha mais a pena trabalharmos e sermos felizes do que no país em que nascemos, a nossa terra! Não se podem sentar crianças na escola a pensarem que o seu futuro será viver longe de tudo o que no presente os rodeia. Se o futuro lhes reservar a emigração como destino, que seja por opção e jamais por não terem opção! Porque aqui existem opções! Existem! E senão existirem nada melhor do que as criarmos!
“Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola.
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade.
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência.
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro.
Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós.
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa história sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo.
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro.
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco.
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura.
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante.
Dão-nos um nome e um jornal,
um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino.
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
não é a vida. Nem é a morte.”
Natália Correia, Dimensão Encontrada, 1957
Queixa das Almas Jovens Censuradas foi escrita num tempo de ditadura e de censura, e é o que vos trago para pensarmos no nosso sistema de ensino e no que ele não nos trouxe para o momento actual. Este é o lamento de toda uma geração que, mais do que a minha, foi obrigada a receber (daí a repetição ao longo do poema do “dão-nos”) uma educação (ir à escola) destinada a produzir bonecos (“manequins”, de “corda”) sem alma (“nossa ausência”, “vazios”), sem ideias próprias (“penteiam-nos os crânios com as cabeleiras dos avós”), sem identidade (“onde não vem a nossa idade”), sem nada! Uma educação que procurava fazer dos jovens cadáveres adiados (” a nossa dimensão, /não é a Vida nem a Morte”).
A antítese “lírio/canivete”, na primeira estrofe, anuncia duas ideias que estão em permanente tensão no poema: vida e morte. Tensão reflectida também no título por “almas jovens censuradas”: a juventude é já por si revolucionária; enquanto a censura esgotava os seus paradigmas num terreno infértil. A liberdade revela-se cerceada no poema: “e uma alma para ir à escola”. Se a alma é sinónimo de desprendimento, a escola tem o significado de educação, pedagogia, uma espécie de condicionamento da alma.
A repetição ao longo do poema “dão-nos” é aquilo que a censura dava aos jovens. Dava-lhes uma educação que os formatava para serem obedientes (uma contradição face à inerente rebeldia da juventude), retirando-lhes assim a garra, e não lhes davam as ferramentas para mudarem o seu futuro: “Mas não nos dão o animal que espeta os cornos no destino”. Os esquartejamento das parte dos corpo (“Dão-nos um cravo preso à cabeça / E uma cabeça presa à cintura” “Penteiam-nos os crânios ermos / Com as cabeleiras dos avós / Para jamais nos parecermos / Connosco quando estamos sós.”) é a deformação que a censura provoca nos jovens.
No final, a dimensão do eu revela-se outra: nem a vida, nem a morte, mas numa condição exilada “com carimbo no passaporte”. Continua perfeitamente actual… Toda uma geração que se vê condicionada na sua liberdade, só que desta vez não é a censura enquanto instituição que cerceia, são as condições de vida e os direitos roubados, utilizando a democracia como meio de concretização desse roubo, e a dívida como justificação. Vivemos numa liberdade aparente, institucionalizada mas que continua por sentir, por se materializar. A liberdade que a democracia nos trouxe devia ter sido acompanhada por um ensino cada vez mais voltado para a transformação, para a reflexão social! Porque a democracia e a liberdade necessitam de ferramentas para lidar com essa democracia e com essa liberdade, para o efectivo exercício de ambas. É uma questão de escolha de conteúdos. Formar virtuosos cidadãos é dar-lhes ferramentas para enfrentarem o futuro, as adversidades, para verem e criarem as alternativas. Isso é ensinar e dar a liberdade. Mas ainda assim, e ao contrário de ontem, hoje temos mais ferramentas, mais meios, e mais conhecimento para mudarmos o nosso destino, ainda que nos queiram impingir a ideia de uma fatalidade. Temos essa vantagem e essa possibilidade! E por isso e ainda mais intensamente, se mantém viva a esperança no “letreiro” que se ganha com a promessa que ele se metamorfoseará em uma flôr: “raízes, hastes e corola”.
Posted on Setembro 15, 2014, in Ideias para o País. Bookmark the permalink. 4 comentários.
Existem quanto a mim duas formas de combater este saudosismo retrógrado no ensino, a primeira é denunciar, a segunda é estimular os miúdos, convidando-os a opinar, a analisar. Inspirar o gosto da aprendizagem é função “caseira”: Saber é bom, mas descobrir é fascinante!
É “uma guerra” com duas frentes. Não nos devemos deixar envolver nos enredos das reformas, das adequações ao mercado, quando nós não sabemos como estará a economia daqui por uma semana, como vamos antecipar que tipo de qualificações serão úteis ou necessárias à economia da próxima década? Reformar o sistema de ensino é chavão velho, gasto, sem conteúdo além do critério economicista. Contudo, todos os governos nos “vendem” mais reformas. No entanto, após tantas reformas, o ensino permanece fiel à realidade da revolução industrial:
A questão da Revolução Industrial e do Iluminismo é muito verdade… Mas a verdade é que a Modernidade assenta neles. O capitalismo é fruto do Iluminismo e do primado da racionalidade que lhe é característico, e nascem com a Modernidade e é a partir dela que a nossa sociedade se organiza. Não concordo que as necessidades da economia não sejam previsíveis…e tb nao discordo de um sistema de ensino que seja adaptado às necessidades económicas da sociedade, afinal o sistema de ensino deve servir e adaptar cidadãos à sociedade. O que está errado é tudo a servir a economia, o ensino e a sociedade direccionadas para a produção económica. E economia deve servir a sociedade. Agora o que está a acontecer é um sistema de ensino que serve para legitimar o sistema económico, como agora algumas vozes que se levantam para o ensino da economia e de bases de finanças como sejam as taxas de juro na escola. O que está profundamente errado é o primado da economia que se instalou, e de uma economia que serve 1% e explora 99%. O mais se possa fazer é acima de tudo ensinar a pensar e incutir esse fascínio pela descoberta alimentado por um certo descontentamento das respostas dadas aos nossas “porquês”. A denuncia é importante e vale sempre a pena, mas os frutos daí extraídos serão sempre poucos, abafados pela ideologia dominante.
Concordamos em discordar quanto à previsibilidade da evolução económica, bem como na assertividade da adaptação de um sistema de ensino a uma realidade economia (seja ela previsível ou não). Em vez de me alongar no comentário, tentarei escrever sobre o tema.
Gostei do seu artigo. Mais do que transmitir conhecimentos o docente deve despertar no discente o prazer de aprender, de pensar para poder entender (nunca, mas nunca “empinar”) os conhecimentos que lhe estao a ser transmitidos.