Natal Social

Numa quadra propensa à benfeitoria como forma de expiação de comportamento padrão ao longo do ano, ocorreu uma situação um pouco anómala. Em contra-ciclo, exactamente nesta época, foi ‘limpa’ uma das zonas onde o flagelo da exclusão social mais sobressaía desaparecendo como que por magia as dezenas de sem-abrigo que pernoitavam na estação Gare do Oriente em Lisboa.

As notícias oficiais dizem que foram todos muito bem acolhidos por instituições, o que passa uma ideia de que está tudo bem para quem não tem contacto com essas pessoas nem com os meios adequados inexistentes para lhes acudir.

Confesso que fico intrigado. Quem socializou com os sem-abrigo da Gare do Oriente sabe que muitos deles recusavam veementemente  a institucionalização, muitos apresentavam até relatos de experiência pessoal, com argumentação convincente, do porquê da sua recusa.

Para quem tem um tecto, rede familiar, comida e conforto, olhar em passagem para uma pessoa em condição de sem-abrigo resulta numa projecção superficial de “e se fosse comigo” que conduz a uma linha de raciocínio de “eu sem-abrigo” muito pouco aplicável à realidade que é “aquela pessoa sem-abrigo”. Intuitivamente julgamos que lhes falta um lar, uma família, rendimentos, conforto. Muitas vezes erradamente. Na verdade não conseguimos projectar ser aquela pessoa sem a conhecer, a sua vida, as suas decisões, as suas convicções, o seu dia-a-dia, até que tenhamos entendimento e legitimidade suficiente para pensar sobre si e a sua condição.

O adquirir deste conhecimento é o passo à frente em relação ao doar surdo-mudo de bens materiais. É o ter de dar um pouco de ti, do teu tempo, da tua intimidade, do teu pensar, do teu ser, quebrar as próprias barreiras mentais, para interagir socialmente com quem normalmente só se interage materialmente. Porque temos ali um ser humano que não se abre com desconhecidos, que se abre com amigos, que conversam, que contam histórias uns aos outros, sem julgamento, apenas pelo prazer do convívio e da troca de ideias.

Tenhamos em conta que o ficar sem-abrigo é um choque inicial, tal como qualquer mudança radical de rotina ou estilo de vida. Primeiro estranha-se, depois entranha-se. A rua quebra. Longos períodos de rua transformam aqueles que assim vivem, alteram parâmetros e padrões de vida, isolam socialmente, formatam o pensamento.

Por tudo isto o que de melhor podemos fazer por pessoas sem-abrigo não é fornecer-lhes periodicamente o alimento, roupas e mantas, que de certo modo são medidas de contenção e não de resolução do problema. Um dar desorganizado contribui mais para o perpetuar do que para o ajudar. Devemos sim tentar resgatar estas pessoas do isolamento social através do fornecimento de tecto e acompanhamento comunitário. Porque aquele “ele” mais não é do que um reflexo do “nós”. E é isso que todos percebemos no Natal.

sem-abrigo-gare-oriente

 

About Nuno Faria

Nascido em 1977, informático por formação, vegano por convicção, permacultor por transformação. Desde cedo que observo e escuto atentamente, remoo pensamento até por fim verbalizar a minha opinião e entendimento, integrando o que faz sentido do que é argumentado por quem de mim discorda. Não sei como aconteceu mas quando dei por mim escrevia sobre temas polémicos, tentando encontrar e percorrer o tão difícil caminho do meio, procurando fomentar o pensamento crítico, o livre-arbítrio e a abertura de coração e consciência. Partilho o que ressoa procurando encorajar e propagar a transmissão de informação pertinente e valores construtivos e compassivos.

Posted on Dezembro 23, 2016, in Ideias para o País and tagged , . Bookmark the permalink. Deixe um comentário.

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