El Corralito

Por certo que o exemplo do incumprimento Argentino nos será servido em abundância nos próximos tempos. Contar-nos-ão as consequências de um fenómeno que ficou conhecido como “el corralito”, nomeadamente a contestação social, a indignação e a revolta das populações. As causas, essas, ficam na gaveta da sapiência dos comentadores da situação. Não são nem ideológicas, nem técnicas, embora quase tudo possa ser explicado dessa perspectiva, a questão central é a distribuição da riqueza. Sempre foi. Assim, em detrimento das consequências, abordarei as causas.

Recuemos até ao século XVI. Os territórios que hoje designamos por República da Argentina tinham então uma densidade populacional muito baixa. A fundação daquela que ainda hoje é a capital, foi apenas um de muitos equívocos, mas uma vez identificadas as fontes e os meios para a extracção de riqueza, foi refundada. Buenos Aires era o centro do poder económico e político do colonialismo espanhol na América do Sul. Por lá passava a prata de Potosí rumo à Europa. A economia local servia esse negócio: produzia essencialmente alimentos e animais para o trabalho naquelas tristemente famosas minas Bolivianas. As definições territoriais evoluíram. O Vice-Reino do Rio da Prata, as Províncias Unidas do Rio da Prata e a República da Argentina, todos partilharam a mesma capital. Dir-se-ia que a Argentina sempre foi “só” Buenos Aires, e que tudo o resto era Caudilhismo. A riqueza extraída viajava obviamente para a Europa. 

A densidade populacional manteve-se baixa até aos fluxos migratórios do século XIX. Com eles chegaram os ecos da revolução francesa. Os movimentos revolucionários visavam não só a independência da Coroa Espanhola, mas também de Buenos Aires. Nela residia a população de origem europeia, não mestiça, que controlava a produção de produtos alimentares, cuja exportação era o novo negócio. A prata tinha nova rota. As últimas décadas do século XIX foram de tal forma prósperas que Buenos Aires era então conhecida como a “Paris da América”, com as suas amplas avenidas e os seus edifícios de arquitectura Art Nouveau. A cidade era então o expoente máximo da cultura urbana da Belle Epóque. Tudo graças à produção agrícola. O resto do território continuou à mercê dos caudilhos, cada um dos quais mantinha o seu privilégio não atacando o privilégio da capital. Séculos de paz podre. Não obstante a assimétrica distribuição de rendimento, a Argentina era à entrada do século XX, e até às vésperas da primeira grande guerra mundial, um dos países mais ricos do mundo!

O mundo mudou no pós-guerra. De forma indirecta, a Terça-feira Negra precipitou o fim da prosperidade Argentina. O principal cliente e investidor, o Reino Unido, estava em dificuldades financeiras pois estava muito endividado junto do seu desejado aliado, os Estados Unidos da América. A sempre precária estabilidade Argentina foi posta em causa pela assinatura do polémico tratado Roca–Runciman, o qual prejudicou gravemente a balança comercial do país, com a agravante de a Argentina nunca ter desenvolvido um sector financeiro suficientemente forte para substituir o investimento externo. Os investidores locais procuraram sobretudo a renda, manipulando as instituições politicas e económicas por forma a obter riqueza sem a produzir. Uma sociedade até então exclusiva, tornou-se ainda mais assimétrica. O ambiente social que sempre fora tenso, tornou-se explosivo. A Argentina viveu assim um longo período de ditadura militar, por vezes alternada por breves momentos democráticos.

A neutralidade Argentina na primeira grande guerra, foi repetida na segunda. O caos social e económico manteve-se até o final desta. A instabilidade foi terreno fértil para o populismo, o qual apenas ocultou o ciclo vicioso. A economia formal continuou a garantir rendimento a um muito restrito segmento da sociedade. Tudo mudou, para que tudo permanecesse na mesma, igual ao que sempre foi desde os tempos do colonialismo Espanhol. A alternância entre governos democráticos e ditaduras militares manteve-se até final da década de oitenta. Foi no início da década seguinte que o governo argentino tomou uma decisão monetária decisiva, ao estabelecer a paridade do Peso argentino com o Dólar norte-americano. Na sempre especial Buenos Aires, o comércio passou a aceitar dólares e os cidadãos foram até encorajados a abrir contas nessa moeda. Parecia uma boa ideia, pois mesmo que o Peso argentino entrasse em colapso, os aforradores em dólares estariam garantidos. O consequente e instantâneo aumento do poder de compra de toda a população precipitou um significativo aumento do consumo de bens importados, proporcionou crescimento económico, mas agravou o desequilíbrio da balança comercial do país, pois a competitividade das exportações foi seriamente afectada. A paridade durou uma década. A riqueza criada por decreto tornou-se insustentável no final de 2001. Os titulares de contas em dólares foram primeiro restringidos nos montantes a movimentar e posteriormente obrigados a aceitar a taxa de câmbio entretanto estabelecida pela desvalorização do Peso. Na prática, o estado argentino apoderou-se de 75% da riqueza existente em dólares. Quem pagou a crise? Os pequenos aforradores, aqueles que não viveram acima das suas possibilidades. Os grandes “Armadores” de Buenos Aires e os caudilhos ficaram a salvo.

Toda e qualquer semelhança entre esta resenha da história económica da Argentina e a actualidade da Grécia será por isso pura alucinação. Apenas encontro um ponto de intercepção: A má influência grega sobre as boas práticas e procedimentos das companhias aéreas Argentinas. Devo contudo dar nota de um pequeno detalhe: A paridade com o Dólar foi decretada após um período de três anos de recessão, pelo mesmo partido que determinou o “el corralito” e que ainda hoje governa a República da Argentina, o Partido Justicialista (ou Peronista).

Felizmente que Portugal não está à mercê de nada disto, a menos que o dito popular “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem” seja mais que um mito. Será? 

el-corralito-2001

About Gonçalo Moura da Silva

... um homem ao Leme. "A minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores. Só me conheço como sinfonia. "

Posted on Junho 30, 2015, in Teorias da Conspiração and tagged , , , , , . Bookmark the permalink. 3 comentários.

  1. Rui Moura da Silva

    Gostei. Penso que a assimetria na distribuição da riqueza e o jogo financeiro da renda são sempre mal comum a todas as Grécias deste mundo.

  1. Pingback: o Leão de Nemeia | ao Leme

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