Et pour cause …

Liguei a televisão e não conseguia acreditar no que via: milhares de pessoas, gritando, saltando, ocupando as ruas de Lisboa, num frenesim sem par.

A primeira coisa que me ocorreu foi que a Revolução estava na rua. Finalmente, ao fim de anos a aguentar uma classe política corrupta e incompetente, a aguentar a chegada dos jotinhas ao poder, a aguentar o desmando daqueles que nunca tinham feito nada na vida, finalmente as pessoas tinham saído à rua.

Não hesitei. Corri para o quarto para trocar de roupa. Para vestir a minha roupa revolucionária. A roupa que tenho guarda para usar no dia em que, finalmente, saírmos à rua para mudar as coisas.

Cinco minutos. Não demorei mais de cinco minutos e estava pronto. A adrenalina percorria-me o corpo e só pensava em encontrar as chaves do carro para me fazer à estrada e chegar à capital. Não mais de 20 minutos. Não mais de vinte minutos para ajudar a fazer história.

 

Durante todo esse tempo pensei no meu ordenado reposto, recuperado dos 40% de cortes que sofri nos últimos anos. Pensei no bom que seria não ter que continuar a fazer contas ao cêntimo para a comida chegar ao fim do mês. No bom que seria ter mais uns cobres para a gasolina de forma a poder estar mais vezes com a minha filha. E pensei nas centenas de milhar de pessoas que vivem com um ordenado mínimo que mais não é do que uma pensão de miséria para não se morrer à fome. Pensei nas crianças que não necessitariam mais de ir à escola durante o período de férias para poderem ter uma refeição quente – apenas uma refeição quente. Pensei nos nossos velhos que teriam, agora sim, dinheiro para comprar os medicamentos de que precisam, dos hospitais a funcionar normalmente, das escolas com obras feitas, e por aí fora.

Emocionei-me. Emocionei-me a pensar que seria desta que algumas empresas passariam a pagar os impostos devidos e não apenas impostos sobre uma percentagem dos lucros enormes que têm, pensei que finalmente se pegaria nos mais de 10.000 institutos e fundações públicas e que se encerrariam aqueles que servem apenas para dar empregos às cliques partidárias, aqueles que têm mais administradores do que trabalhadores, que acabaria a palhaçada da entrada na administração pública de milhares – repito, de milhares – de meninos dos partidos, com contractos obscenos enquanto se pretende ‘dispensar’ uns milhares de funcionários que entraram por concurso público, com provas feitas.

Pensei, na realidade, que o povo tinha saído à rua para cumprir Abril, ou seja, para finalmente criar um país justo e solidário, um país onde todos têm lugar numa lógica de respeito e solidariedade, onde quem tem mais ajuda quem tem menos e quem tem menos se dedica afincadamente a criar uma vida em que possa vir a ter mais.

Finalmente encontrei as chaves do carro. Em cima de uns livros numa estante carregada de mais livros, essas coisas que vão caíndo fora de moda e que nos dão a ilusão tão importante que é o sonho.

E foi então que ouvi, vindo da televisão que me tinha esquecido de desligar, os gritos cadenciados: “Campeões, Campeões, nós somos Campeões”.

Estaquei, estarrecido. Um frio percorreu-me de alto a baixo enquanto me aproximava do maldito aparelho, esperando que aquilo não tivesse sido mais do que um sussurro perdido, uma ilusão.

Não era.

O Povo saíra à rua, sim, mas não para lutar por uma vida melhor, não para lutar por um país melhor, não para lutar por um futuro melhor, mas sim para celebrar o futebol. Para celebrar a vitória de meia dúzia de broncos, incapazes de criar uma frase com princípio, meio e fim, que ganham, tantos deles, em dois meses ou três, aquilo que alguém não ganha numa vida inteira de trabalho. O Povo saíra à rua para gritar hossanas a quem, com fortunas assim, paga impostos reduzidos, a quem se reformará aos trinta e poucos e não precisará nunca de ter uma vida útil.

Comecei a tirar a roupa da Revolução. Larguei as chaves do carro em cima dos mesmos livros de antes e não pude deixar de pensar que pena é existir um país assim.

desesperada

About A.J. Ribeiro

O 'Penso, logo existo' é um mito. Todos os dias me cruzo com quem não pensa mas não deixa de existir por causa disso. A palavra 'porquê' é a mais importante do meu vocabulário. E a mais aborrecida. Não para mim mas para a maioria dos outros. Principalmente daqueles que não pensam. Não tenho causas. Ou tenho apenas a minha: a minha forma de ver o mundo, a minha forma de entender os outros, a minha forma de estar com os outros. E é assim que vivo. Na perspectiva de que o Mundo é aquilo que acho dele. Quem não gostar ... azar!

Posted on Abril 22, 2014, in Ideias para o País. Bookmark the permalink. 1 Comentário.

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