Um Dia o Sol Foi Meu
AVISO:
1º Um dia o sol foi meu! Que não haja dúvida!
2º O Sol que vos ilumina só é astro rei para os sub-lunares. Que sois vós.
3º O sol que aqui trataremos foi rei um dia e sê-lo-á sempre. Coisa impossível para outros sóis. Até as estrelas morrem; fazem puf…
4º O que aqui será dito é inteiramente verdade, factualmente e cronologicamente. Salvo aquilo que se entende, e pretende, como criação.
5º À criação tudo é permitido. Até mesmo colocar o Sol em movimento rotativo, como já aconteceu.
6º Para quem tem a tendência, porque os há, de por tudo em causa; mesmo aquilo que
d-escrevo; fica-lhes aqui a orientação remetida para o ponto 1º deste aviso.
Fiat Lux!
Com a chegada das andorinhas partiam os compinchas. Os afazeres domésticos agendados, alguns, desde as últimas férias grandes, tornavam os meus amigos mais atarefados que em tempo de aulas. Estávamos em férias grandes. Era uma freima.
Naquele ano, não sei porquê, os meus dois compinchas habituais estavam mais ausentes ainda. Ajudaram-me a levar o papel à farrapeira, algumas coboiadas, alguns pontapés na bola, umas idas à bouça e, murchou. O Mário parece que tinha ido visitar os seus familiares Galegos e o Júlio… o Júlio, olhem nem sei; mas que faltava à chamada habitual assobiada de cima do muro, faltava. Agora fiquei intrigado, porque faltou nesse ano?… Hei-de perguntar…
Tenho mesmo de saber porque nesse ano nem me ajudaram a arrumar a garagem.
Por isso andei por ali… não tinha irmãos, os meus primos já olhavam prá sombra das raparigas, e para elas mesmo parece-me, mas isso são outras conversas; a garagem estava ali… para ser arrumada… mas, também dali não saía… pintei as grades da varanda do jardim, lubrifiquei os estores com massa consistente, fiz uns recados, mas… Como se diria hoje, uma baita duma seca.
As únicas saídas que tinha, ali por perto, eram alguma entrega leve a uma cliente ou uma ida à farmácia. Sempre rápido, ia numa sandália e vinha noutra.
Foi numa ida à farmácia, mais precisamente numa vinda, que tudo mudou ao ser interrompido pelo meu tio Jerónimo de saída para não tenho nada com isso, Olá Zé, Olá tio, Está tudo bem lá em casa? Muito obrigado está sim senhor, E a tia como tem passado? Bem, para onde vais?
Vou agora mesmo para casa que venho da farmácia e… A avó está doente? Não senhor está tudo bem, Então vamos os dois, que eu quero falar com a tua mãe.
Com-a-mi-nha-mãe? Qé que eu fiz?
Olá Fernanda, Olá Jerónimo, Então tudo bem? (duas vezes), eu vinha cá convidar o zézito, se você deixar, para ir almoçar lá a casa, pode ser? Pode, quando? Agora, daqui a bocado. Então Zé agrada-te a ideia? Pode ser, obrigado. Ó Fernanda, levo então mais uma laranjada para o rapaz e ele assim vai já comigo.
Porta-te bem!
As mães, de todo o Mundo, deviam saber que os filhos só se portam mal em casa, em frente delas e dos respectivos maridos. Na casa dos outros são uns “anjinhos”, toda a gente sabe disso! Mas nunca resistem a envergonhar as crianças, que se sabem portar lindamente, com o inevitável; “porta-te bem”…
Tipo… ai… mete-me uns nervos…
Apresento-vos o casal, antes do almoço, senão vocês não percebem patavina do que estou para aqui a dizer. Se tiverem dúvidas perguntem. E não se façam convidados.
O meu tio Jerónimo era casado com a minha tia Laurinda, alguns de vocês conheceram, mas os mais novos não sabem como eram simpáticos e simples esses nossos tios (falo para vocês primos). Se há casais que deixam saudades pelas suas meiguices ao longo da vida este foi um deles, é por isso que, embora fossem também vossos tios, os trato assim, possessivamente.
A nossa família pode falar assim, possessivamente, de muitos tios. Conheci muitos e sei do que falo. Daremos tios de posse também, tenho a certeza.
Nem me lembro do conduto, o que se tratou no “almoço de trabalho” foi aeronáutica, e falemos disso. Vocês sabem como eu gosto de ser aéreo…
Ó tia, prometo que vos vou dedicar um tempinho, que bem merecem, para que esta meninada saiba quem foram, mas agora tratamos de engenharias, de construções, de elevações aos céus, de viagens e outros voos. Depois tia; está prometido.
Ó tio então e onde arranjo canas? Na Quinta da Pícua? Papel de seda tenho o da escola, goma-arábica arranjo na loja, fio peço à tia Alice, Não dá? Fio do Norte? Ó… isso só na drogaria; vou ao mealheiro. Rabo? Qé isso? Ah… para dar estabilidade… e o tamanho? Não! O rabo já sei. O tamanho do sol? Metro e meio? Mas… metro e meio é mais que minha altura!…
Vou arranjar as coisas e depois venho cá, domingo já devo ter as canas; depois venho cá.
Até me esqueci das despedidas, saltei as escadas, degraus dois em dois, olá prima Lurdes, até logo primo Albano e isto é segredo meu, construção clandestina Los Alamos de Águas-Santas, aeronáutica experimental em construção amadora, Alto! E o fio do norte, mas como é que vou arranjar dinheiro para comprar dois rolos de fio de norte?…
Na tarde combinada, estando os materiais devidamente aprovisionados e conferidos em quantidade e qualidade, iniciaram-se os trabalhos no hangar a que também se dava serventia de cozinha.
A simetria dos raios, seu comprimento e furação, a amarração central com precisão de bobinagem e a fixação das pontas das canas (da Índia por exigência), fizeram o conjunto aeronáutico duma limpeza que, ficamos certos, ao voar, o escoamento laminar perfeito impediria a perda imediata de sustentação. Nascia um aerodino.
Continuamos na célula. A fuselagem é tão importante quanto a estrutura.
A colagem dos gomos foi feita com um cuidado meticuloso de puzzle sendo o pincel muitas vezes introduzido de viés aperfeiçoando uma união já consolidada. As pontas das canas sendo boleadas exigiram um remate especial. As cores do papel de seda, em alternância, davam ao conjunto, um garrido que se assemelhava à alegria dos construtores de aeronaves.
Que bonito…
Antes de nós um construtor de aeronaves a sério tinha dito: – Se for bonito, voará bem!
Era o caso. Voará bem…
E eu, ainda de mãos pegajosas de goma-arábica e dedos golpeados da caça às canas tinha sido parte da aventura, era quase, é bom que se saiba para que me olhem com conveniência, engenheiro aeronáutico.
Na verdade fui mais assistente de engenharia, mais dá-cá-isso, de vez em quando chegamisso e finalmente chega-rebos, uma vez que no fim do rabo estava projectada e recebeu competente instalação, um saco com uma pedra que, poderia variar a massa em função das necessidades aerodinâmicas. Mas quem escolheu a massa fui eu!
Um Primor! Uma construção Mimosa!
Era a hora do lanche. Leite com torradas que até me está a crescer água na boca…
Ó tio, podíamos ir agora!
Não, vamos deixar secar e amanhã se estiver Sol vamos lançar o sol para a Caverneira.
Esteve Sol!
As operações não se resumiam a uns meros 10, 9, 8… e por aí fora até ao lift off…
Nada disso! Muito mais complicado, muito mais saber, muito mais engenho.
Estávamos na Caverneira! Isso de Canaverais é para amadores.
Briefing ao equipamento:
SOL – Ok,
RABO – OK (massa colocada e bloqueada),
AMARRAÇÃO – verificada e centrada,
FIO – livre e pronto a esticar,
VENTO – de frente, firme e estável,
MOTORES…
(não sei se os que me lêem sabem como se descola um sol. Se não sabem perguntem aos mais velhos e deixem de ser engraçadinhos OK?)
– Firmes!
A pista foi escolhida tendo em conta a orientação do vento e as condições do terreno, exigências técnicas que presentearam os aeronautas com uma vista lindíssima sobre o Mundo; que nos observava.
(quem conhece sabe que a vista da bouça (que ainda existe como tal) mesmo ao lado da Associação Recreativa os Restauradores do Brás-Oleiro é das mais bonitas do Mundo.)
O vento barlava suave de Setentrião, lado do bom tempo… corre!… corre mais… Mais!
Ergueu-se o aparelho em vida colorida, serpenteava o rabo em danças de dragão asiático, bamboleava a pedra ameaçando quem se intrometesse. Que beleza!…
A pilotagem era feita de coração ao pulos, como a alegria, rodopiou algumas vezes o astro mas sempre firme no seu querer de subir, que galhardia.
Durou que tempo? Minutos? Segundos? Horas não, mas o que é o tempo? Que importância é que isso tem! Ainda dura.
Até que soprou o Zéfiro regressado dos seus trabalhos equídeos. E regressou forte. Não foi cisalhamento mas uma faca que surgiu. O enfiamento perfeito, a subida firme, a postura airosa antes desta rajada, resultaram numa vrille descontrolada até às copas mais altas dos eucaliptos.
O que faz um piloto quando a sua aeronave cai?
Eu caí de joelhos. Chorei. Chorei olhando o arco-íris que o sol fazia entre a mais alta copa da bouça e os meus olhos. Nunca mais esqueci aquela luz. Passando lá, mesmo à noite, ainda a vejo.
A luz dum sonho que se eterniza.
(imagem retirada de http://garatujando.blogs.sapo.pt/arquivo/591638.html)
Posted on Maio 4, 2014, in Memórias e Sonhos. Bookmark the permalink. 3 comentários.
Gostei. Muito. Lembrei-me das minhas tardes no aeroporto de cabo ruivo, na companhia do meu avô paterno, ele próprio marinheiro convertido à aviação comercial. Ali, onde hoje é o Oceanário de Lisboa, vivi a “aeronáutica experimental”. Há mais de 20 anos que não “ouvia” chamar “fio do norte” ao novelo de linho. Revivi a construção do meu primeiro papagaio, experiencia que graças à generosidade do bom do Eduardo, vivi como “engenheiro-chefe”. Nunca vi um Clipper a amarar, mas com eles sonho desde então. Obrigado por lembrares que o sonho também tem lugar neste Blog. Bem-vindo a Bordo!
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Obrigado Gonçalo. Por tudo.