Jota Kafka

(antes do almoço), portanto, de manhã.

05-Jota Kafka-01

A porta dos sustos estava ali mesmo em frente, escancarada, directa para a rua; e dela escoava um rum-rum, era mais um zum-zum, de muita gente que mastigava ondes quandos e porquês.

Embora muitos lessem só o jornal grátis, e em silêncio.

Entrou, procurou indicações, leu letreiros, colantes, avisos e dirigiu-se à máquina das presenças. O aparelho cuspiu um A49 em papel acetinado, seguido de quarenta e nove, e «Ah!» disse ele quando na pantalha mural viu o A15, actual piscante. São dez horas, já foram atendidos quinze, faltam 33. Ora, se numa hora foram 15, vai ser rápido. Dlim-Dlam… «vês!», disse se si para com ele, já chamam o dezasseis…

Apertou o Castelo no sovaco, enrolou o guarda-chuva, procurou assento e exalou um «Aguardemos» resignado.

O corredor de espera, porque não se tratava duma sala, estava apinhado de contribuintes, talvez um cento, quem sabe, não sei, não quero contribuir para o confundir ainda mais, não a ele, a si, meu leitor; nem impor um número para pintar a cena. E apinhada, é uma maneira de falar porque, o entrançado de pessoas era tal que mais parecia um enramado; enfim é o que sói dizer-se quando já não cabe mais uma sardinha na lata, que era o que parecia o ambiente, tal a quantidade de alumínio e aço inoxidável nas paredes. E mesmo contribuintes, meu querido, não sei não, ninguém estava ali com vontade de contribuir com coisinha nenhuma, que isto de impostos, são mesmo o que a palavra quer dizer, uma imposição, portanto, olhe, infligidos?, obrigados?, obrigados também talvez não, pois induz a uma retribuição, olhe!, talvez seja isso mesmo; re,tri,bu,i,do,res. Embora ninguém lhes tenha dado nada para devolução posterior.

Sentou-se, desfolhou, «esta agora, onde tenho os óculos?» ouviu-se. E saiu. Todos o olharam. As conversas não pararam, nem mesmo aquela senhora afónica que contava os motivos da vinda e nunca mais se ia; todos olharam. Deve ser o tédio da espera, quando alguém sai da postura, altera o cromatismo do ambiente e chama a atenção, e daí as pessoas olham, curiosas, olha aquele, agora ficou a espera descomposta, borrou a pintura, estava ali tão bem sentado e, olhe, ó senhor?, que lhes hei-de fazer, irra, cuscos!, vou só ali ao carro buscar os óculos!, as letras são pequeninas! Nada!, estou a brincar consigo, então acha que aquela mole de gente se havia de importar com mais um que abandonava? Ficavam era todos contentes por ser menos um no estorvo. Tudo continuou na mesma com a diferença de ter perdido o lugar sentado, para nunca mais. Pelo menos pensa-se que sim.

Já agora, quero deixar bem esclarecido que, quando o tratei por ‘querido’, não o fiz por excesso de confiança mas sim por amizade à paciência que normalmente manifesta em ler o que lhe conto de viva voz. Aliás, aquela senhora ali ao fundo é que poderia ficar ofendida uma vez que, não gosta que lhe troquem o género. Grato por compreender.

Voltou, conferiu a posição e, «Ah!» interjeitou, «ainda no A16?» Que se teria passado? Que estranho avanço desenvolveria o Dlim-Dlam da máquina, se aquilo não avançava? Foi verificar. Constatou que, como há quinze minutos atrás, a mesa 5 estava com o mesmo casal e a mesma funcionária e, as mesas 1, 2, 3 e 4 permaneciam vazias de funcionários e clientes.

Voltou ao corredor de espera e; não, ninguém olhou desta vez. A senhora afónica continuava na sua voz de flanela eriçada a despejar o gasganete. Procurou a pantalha e, o que viu!, os tempos de espera de Portugal inteiro estavam a ser apresentados em pequenas barras verticais a lembrar termómetros, mas, sem tempos. Não sei se me faço entender. Espreite aqui, está a ver aquele grupo de barras verticais que lembram uma flauta de pan? Ora na pontinha devia estar o tempo que demora o atendimento em Portalegre, em Castelo Branco, em Freixo de Espada à Cinta, e por-aí-fora; mas não, não sabemos quantos minutos (ou horas!) demora atender cada cliente. Não sabemos até, se será hoje!

Procurou um balcão de informações. Aí sim, toda a gente olhou outra vez. Reolharam pronto, que isto é mesmo assim, quando uma pessoa começa a buliçar numa fila de atendimento, não há quem resista a botar os olhinhos.

Nos entretantos, lá do fundo, ora veja, lá do fundo, vem um senhor simpático, o sr. Aníbal Alfaiate, muito prazer, que, na tentativa de ajudar, diz ao nosso Jota que não se pode fazer contas às médias aritméticas do tempo despendido por cada cliente a ser atendido porque há casos mais demorados que outros, outros mais complicados ainda, o que demora ainda mais tempo, e, por isso, temos de ter paciência. De ter não; que ter!

«Muito obrigado», sibilou o nosso Jota. «É que sou novo nestas coisas», resibilou. «O sr. é que como alfaiate deve estar habituado a atender muita gente e com medidas diferentes, mas eu…». Ao que o sr. Aníbal respondeu, «eu sou mecânico de automóveis e sou a seguir para pagar a décima; felicidades, que lhe corra tudo bem.»

Está bom de ver que aquele companheiro de espera veio exasperar bastante o nosso herói. Pois se a coisa nem andava nem desandava, como poderia correr? E que nem bem nem mal, mas enfim. «Assim, como assim, já que tenho a manhã perdida vou ler a informação importante espalhada pelas paredes até ser atendido.» disse o nosso herói.

Sei que já reparou que tenho tratado o público em geral por clientes (sem ofensa) e o nosso Jota por herói. Porque é disso que se trata, dum herói!

Quanto a Jota, que abreviarei para Jponto, é o nome de baptismo, sendo o Kafka de família, pela parte das circunstâncias e narrativas bizarras, e, como todos nós, J., é “um homem e a sua circunstância”, e nisto, talvez se salvem as mulheres e crianças.

Saberá o amável leitor que tudo tem limites e, quando J. viu agrafado na parede um nota informativa em papel A4 dizendo que quem tivesse papeis acetinados ‘E’ podia não ser atendido no mesmo dia da chegada, caiu de joelhos. Calma… calma… é metafórico; até porque J. tinha papel acetinado ‘A’. Já não se lembrava? Pois é, mas agora imagine que ia, como qualquer Português que se preze, pagar a sua colecta, mesmo que fosse derrama, no último dia do prazo hã?, que fazia hã?, claro que também caía de joelhos ao ler semelhante.

No caso de J. o caso é mais simples mas, mais insólito. Insólito talvez não seja bem a palavra uma vez que o que lhe contarei acontece frequentemente, no entanto, não deixa de ser estranho. J. estava preso. Sabia que não ia mais ser atendido durante a manhã, nem tinha a certeza de ser atendido de tarde, só que, e este só é para não nos alongarmos, estava escrito noutra folha A4 que os ‘A’ teriam de aguardar até às doze e trinta, para que um funcionário viesse validar o número em sorte para que pudesse ser reconhecido de tarde, às catorze horas. E como, tanto podia ser um funcionário como podia ser uma funcionária, vou deixar aqui escrito, sem medo a criticas que seria, alguém.

De maneira que, embora tenhamos já falado muito e acontecido outro tanto, são ainda, e só, dez horas e trinta minutos, e, tudo como dantes, quartel-general em Abrantes, o número da pantalha mantém-se firme há meia hora no ‘A16’ e, nem o pai morre nem a gente almoça.

«Mas porque carga de água não posso sair para almoçar agora, e voltar de tarde?»

«Já agora, como tenho tempo, vou lá fora ver o tempo. Há bocado não chovia.»

Nem preciso de lhe dizer que as anteriores duas (2) afirmações são no nosso J., sendo que uma é uma interrogação e a restante uma afirmação com uma dúvida no fim.

Agora nós, eu para vós.

E, uma vez que este fandango vai demorar, e nós não queremos fazer sofrer o alheio (o J. também concordará) vá, se faz o favor, almoçar que cá nos encontraremos no pós-repasto.

Bom apetite!

E, esqueça agora o sub-título, que não há nada como uma barriguinha cheia para resolver

esses imbróglios.

(continua)

 

sobre a figura:       da WEB, sem paternidade registada.

About José Bessa

Que dizer, quando não há caminho? E nós não somos senão caminho; tudo o resto é plágio. Pede-se, compreendo… uma nota biográfica. É algo de mim que não tenho. Refiro-me ao que daqui me vêm. Sou isto mesmo, nada mais que uma palavra antes, outra depois, escrevendo de ouvido porque analfabeto. Peço que entendam quando me emociono, que me protejam quando enraiveço, que me ajudem quando esmoreço. E se me lerem; agradeço. Já pensei em escrever, é verdade, e, por pudor, imaginei até um outro nome para que não me soubésseis assim, directamente. Seria “jacente”.

Posted on Junho 14, 2014, in Geração "à rasca", Mentalidade Tuga and tagged , , , , . Bookmark the permalink. Deixe um comentário.

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